Davi, um menino de 10 anos, gostava de ajudar seus pais nas tarefas de casa e sua professora e seus colegas na escola. Sua família não tinha muito dinheiro, mas fazia questão de mantê-lo matriculado na melhor escola da vizinhança. Tudo mudou depois que ele viu um homem magro e sujo na rua e lhe ofereceu um sanduíche, o lanche que sua mãe havia preparado com tanto carinho.
Dias depois, a polícia bateu na porta da sua casa, e nada foi como antes. Em uma casa pequena e modesta, Jonas e Bruna viviam com seu filho Davi. Era um humilde quarto e sala; cada cômodo tinha apenas o tamanho necessário.
O único quarto era reservado para Davi, enquanto os pais dormiam em um sofá-cama na sala. Mesmo vivendo com simplicidade, a família era feliz e amorosa. Jonas era um engenheiro que havia ficado desempregado e agora trabalhava como motorista enquanto buscava emprego em sua área.
Bruna era cuidadora de idosos e atendia três famílias diferentes. Era comum o casal trabalhar de domingo a domingo e até virar a noite trabalhando fora. Quando os pais ficavam ausentes por causa do trabalho, Davi ficava com uma das avós, que moravam em bairros vizinhos.
Por ver os pais sempre atarefados, Davi aprendeu desde cedo a importância de ajudar a família. Mesmo pequeno, já cuidava do material escolar, lavava sua louça e dobrava suas roupas, o que enchia seus pais de orgulho, além de permitir que eles tivessem mais tempo para descansar da rotina tão exaustiva. Na escola, Davi também ajudava a professora e os colegas sempre que podia.
Ajudava a arrumar a sala e apagava o quadro. Quando algum colega tinha dificuldade, ele fazia questão de ser o primeiro a ajudar. Até na hora de brincar, Davi era prestativo.
Se ninguém queria ser o goleiro na hora de jogar bola, ele se voluntariava sem pensar duas vezes, mesmo adorando fazer gol. Na porta da escola, os outros pais e mães perguntavam para Jonas e Bruna como eles faziam para educar tão bem o filho. Lisonjeado, o casal respondia: "Apenas damos amor e disciplina, além de exemplo, é claro.
" Na mesma turma de Davi, estudava Henrique, um menino respondão e encrenqueiro que ia para a sala da diretora pelo menos uma vez por semana, por causa de alguma brincadeira de mau gosto. Quando Henrique pediu um lápis de cor emprestado, ninguém quis emprestar, mas Davi emprestou. Depois, Henrique não quis devolver.
As outras crianças falaram para Davi ir direto para a diretora, que tudo se resolveria. Em vez disso, Davi conversou com Henrique. Disse que emprestaria seus lápis todos os dias, desde que ele devolvesse e que não contaria para a professora nem para ninguém, porque confiava em Henrique.
Surpreso por ter sido tratado com gentileza pela primeira vez por um colega de sala, Henrique concordou, e, aos poucos, convivendo com Davi, suas visitas à sala da diretora foram diminuindo, até que se tornaram coisa do passado. Mesmo trabalhando exaustivamente, os pais de Davi se esforçavam para arrumar tempo para passear com o menino. Sempre que um dos dois podia, era raro os dois terem tempo livre juntos, algo que só acontecia em aniversários e no Natal.
Ainda assim, eles se revezavam para levar Davi no parque ou para tomar um único sorvete, o máximo que o dinheiro deles permitia. Eles se esforçavam para que o filho não percebesse que, na verdade, estavam passando por dificuldades financeiras. Davi, mesmo pequeno, reparava que seus pais trabalhavam cada vez mais e que a geladeira se enchia cada vez menos, mas não reclamava, pois sabia que seus pais sempre faziam a coisa certa e resolviam todos os problemas.
Era neles que o rapaz se inspirava para estar sempre dando o seu melhor em casa e na escola. Na ausência dos pais, Davi brincava com os colegas na rua. Eles viviam em uma vizinhança tranquila, rara nos dias de hoje.
As crianças podiam brincar no parque e sempre tinham adultos por perto, entre moradores, porteiros dos prédios, trabalhadores da padaria, da loja de conveniência e do restaurante da rua, que conheciam uns aos outros, e cada uma das crianças. O maior dos problemas que eles poderiam ter era um joelho ralado, um problema frequente, mas pequeno em comparação aos problemas do nosso mundo. O que importava era que todos se orgulhavam de oferecer às crianças a infância segura e divertida que todo mundo deveria ter.
O parque tinha escorrega, balanço, trepa-trepa, gangorra e um campo aberto para as crianças correrem, que geralmente era usado para jogar bola. Mesmo sem trave, as crianças usavam chinelos para demarcar o espaço do gol. As regras do jogo mudavam quase todos os dias, junto da quantidade de jogadores: às vezes três em cada time, às vezes seis ou até sete, preenchendo o campo de crianças.
Quando não estavam chutando a bola de um lado para o outro, brincavam de três cortes ou de batata quente. Até que, em uma manhã de domingo, havia uma pessoa diferente no parque. As crianças chegaram cedo para brincar e, em vez de se espalharem pelos brinquedos, ficaram todas reunidas em um canto.
Do outro lado, sentado em um banco, estava um adulto diferente. Sua camisa, que um dia foi branca, estava toda manchada e puída. Sua calça estava rasgada na altura dos tornozelos, seus pés estavam descalços e com cicatrizes.
Sua barba e seu cabelo eram cinzas, e nenhuma criança sabia dizer se aquela era a cor natural dele ou se era o acúmulo de sujeira. Seus braços e maçãs do rosto estavam magros, fazendo com que os ossos ficassem visíveis por baixo da pele. Sua cabeça estava baixa e seus olhos estavam fixados no chão.
As crianças ficaram com medo e começaram a discutir sobre o que fazer. Não sabiam se deviam chamar algum adulto ou apenas ir embora e voltar mais tarde. Enquanto falavam entre si, Davi chegou trazendo um sanduíche e uma garrafa d'água nas mãos.
Ele percebeu que as crianças não estavam brincando, mas não entendeu o motivo. Quando viu o homem magro e sujo sentado no banco, ficou ainda mais confuso. Com sua inocência e eterna vontade de ajudar, foi até o parque e sentou ao lado do homem.
— Você está muito magro, está com fome? Quer um sanduíche? Tem água aqui também, pode pegar se quiser — Davi perguntou.
O homem ficou olhando para o garoto por um longo momento. Davi imaginou que ele devia estar com sono, pois adultos costumam sentir muito sono nas manhãs de domingo, e também que devia estar com muita fome pelo estado físico dele. Sem dizer nada, o homem pegou a água, deu gole e então pegou o sanduíche e começou a comer devagar.
Ao longe, algumas crianças correram para suas casas, enquanto outras ficaram olhando, divididas entre a surpresa e o medo. Davi observou o homem comendo e percebeu que havia algo de errado com ele. Nunca havia visto alguém naquele estado, nem alguém tão silencioso; o garoto se perguntou se aquele homem sequer era capaz de falar.
Talvez esse fosse o seu problema: não conseguir falar. Depois de comer o último pedaço do sanduíche e de beber o último gole d'água, o homem finalmente disse: — Obrigado. Com uma voz seca e miúda, então ele conseguia falar.
Esse não era o problema dele, ainda assim havia algo de errado. Davi só não conseguia entender. Com certeza era alguém que precisava de ajuda, mas pela primeira vez Davi não sabia como ajudar.
Davi perguntou o nome do homem, que respondeu que era Luí ou Fernando; ele não tinha certeza. Davi perguntou onde ele morava e o homem disse que era numa casa com tijolos amarelos, mas não tinha nenhuma casa daquela cor na vizinhança. Davi perguntou pela família do homem e tudo que ele respondeu foi que não via seus parentes há muito tempo.
O menino continuou fazendo perguntas, mas as respostas eram todas vagas. O menino continuou conversando com o homem; era a primeira vez que ele não conseguia conhecer a pessoa com quem falava, mas estava decidido a ajudá-lo. Enquanto tentava encontrar alguma forma de compreender aquele homem, Davi ouviu a voz da sua mãe chamando de uma forma que nunca havia ouvido antes.
— Bruna! — berrou o nome do filho, dizendo — Vem aqui agora! Assustado, Davi correu até a mãe e tentou dizer que aquele homem precisava de ajuda, mas a mãe não deu ouvidos.
Assim que o filho chegou ao lado dela, Bruna direcionou os gritos ao homem: — Vai embora daqui e não volte nunca mais! Se chegar perto do meu filho de novo, eu chamo a polícia! Suma daqui agora!
Davi paralisou, assustado e confuso. O homem ouviu tudo, sem dizer nada. Devagar, ele se levantou e foi embora, sempre de cabeça baixa.
Bruna continuou gritando até ele se afastar, então pegou a mão do filho e o levou de volta para casa, apressada, quase correndo de volta ao lar. Jonas e Bruna reagiram como qualquer adulto reagiria depois de um susto daqueles e deram uma bronca no filho. Eles disseram: — Nós já explicamos um milhão de vezes que não se deve falar com o estranho!
Aquele desconhecido podia machucar você ou, pior, levar você embora, e você nunca mais ia ver seus pais ou seus amigos! O sermão foi longo e Davi ficou com o coração na mão, pois só estava tentando ajudar. Ainda um pouco confuso, o menino foi para o seu quarto e lá ficou o resto do dia, tanto por ordem dos pais quanto por não ter mais vontade de brincar.
De noite, Bruna foi ao quarto do filho, sentou ao seu lado na cama e conversou com mais calma. Falou que só reagiram daquele jeito porque amavam o filho mais do que tudo na vida e que não conseguiam nem imaginar algo de ruim acontecendo com ele. Ela deu sua palavra que os pais não falariam daquele jeito de novo, mas que Davi também precisava fazer a parte dele e não voltar a falar com estranhos.
O garoto ouviu tudo sem responder à mãe e apenas concordou. No final, ele perguntou se mais alguém tinha conversado com o homem, pois ele com certeza precisava de ajuda. A mãe contou que alguma criança havia chamado os pais para o parque, mas quando os adultos chegaram, o homem já tinha ido embora.
Com pesar, Bruna disse para Davi que nem sempre conseguimos ajudar todas as pessoas, por mais que quiséssemos. Davi ficou mais triste por não ter conseguido ajudar o homem do que por ter levado bronca dos pais. Mesmo assim, ele estava decidido a obedecê-los.
Afinal, eles eram sua maior fonte de inspiração. No dia seguinte, sem que Davi soubesse, Jonas e Bruna tinham uma reunião agendada na escola do filho. O casal deixou o filho entrar pelo portão, esperou alguns minutos e entrou em seguida.
Depois de um momento de espera na recepção, foram encaminhados para a sala da diretora. A sala da diretora tinha uma escrivaninha e um armário, ambos de madeira, um único ventilador de chão e uma ampla janela com persianas, além de quadros enfeitando a parede. Era uma sala acolhedora, apesar de um pouco quente.
A diretora Selma os recebeu com um sorriso educado e formal e pediu para que eles se sentassem. Ela tinha a idade para ser a avó dos alunos da escola, mas mantinha sua saúde e sua compostura firmes. Vestia um blazer bege, seus cabelos eram tingidos de loiro e seus óculos eram elegantes.
Como havia sido Jonas e Bruna que tinham agendado a reunião, a diretora apenas esperou que eles falassem, apesar de que ela já imaginava qual seria o assunto. O casal estava constrangido, até com um certo medo. Eles haviam atrasado a mensalidade do filho e talvez precisassem atrasar mais uma.
Eles pediram desculpas e prometeram que iriam pagar tudo. Os dois já estavam trabalhando a mais para garantir o sustento da família e garantiam que o estudo. .
. do filho era a maior prioridade. Selma ouviu calmamente, compreendendo que os pais precisavam desabafar e que queriam avisar sobre o atraso da mensalidade, para que não parecesse que o casal estava fazendo pouco caso com a escola.
Depois de ouvir com atenção, Selma os acalmou e garantiu que Davi era muito bem-vindo na escola. Ainda assim, eles já tinham um desconto generoso na mensalidade e a escola não poderia renovar a matrícula do aluno no final do ano, caso as mensalidades não estivessem todas quitadas. Jonas e Bruna agradeceram a compreensão, pois sabiam que isso era tudo que a escola poderia fazer pelo filho deles.
Ainda assim, por dentro, eles tinham medo; mal estavam conseguindo dinheiro para pagar as contas do mês e precisavam quitar a dívida até o final do ano ou teriam que tirar o filho da escola que ele tanto amava. Enquanto isso, sem saber de nada, Davi estudava a poucas salas de distância. O bairro inteiro havia ficado sabendo do homem estranho que havia aparecido no parque no dia.
As crianças da escola estavam comentando e tratando Davi de forma diferente; se antes ele era um exemplo de menino que ajudava a todos, agora estavam falando que ele era irresponsável por ter falado com um estranho, sendo usado de mau exemplo pelas mães e sendo até evitado por alguns colegas que antes sempre queriam sentar ao lado dele. A escola organizou um tempo entre as aulas para falar sobre segurança e sobre o cuidado de falar com desconhecidos na rua, o que deixou Davi ainda mais sem graça. Ele até mesmo cogitou se esconder no banheiro da escola até o final da aula; tamanha era sua vontade de simplesmente desaparecer.
Ele entendia que os adultos estavam apenas pensando na segurança das crianças, mas estava frustrado por ninguém enxergar que aquele homem precisava de ajuda. Afinal, se as pessoas ouvissem e ajudassem mais umas às outras, o mundo seria um lugar menos perigoso para todos. Alguns dias depois, ainda naquela semana, bateram na porta da casa de Davi.
Jonas estava sozinho com o filho, pois Bruna estava de plantão na casa de um dos seus pacientes. O pai ficou apreensivo, pois só queria sossego depois dos acontecimentos estressantes dos últimos dias. Quando abriu a porta, engoliu em seco ao ver dois policiais.
Os homens fardados cumprimentaram Jonas com educação e foram direto ao assunto: “Fomos notificados que houve um incidente no domingo. O seu filho teve contato com um homem desconhecido no parque. Precisamos que o senhor nos conte em detalhes tudo o que aconteceu.
” A mente de Jonas ficou um turbilhão; ele sabia que a vizinhança toda estava comentando o acontecido. Afinal, várias crianças também viram o homem estranho no parque, mas se as autoridades ficaram sabendo e agora estavam fazendo perguntas, talvez aquele homem fosse perigoso, talvez já tivesse cometido algum crime em algum bairro vizinho ou até mesmo fosse foragido da polícia. Jonas pediu que os policiais entrassem, ofereceu um café, mas os homens quiseram só um copo d'água.
O pai de Davi contou tudo em detalhes. Depois, eles pediram para fazer perguntas ao menino e o pai autorizou. Os policiais foram gentis e pacientes com a criança, fizeram muitas perguntas e algumas anotações.
Jonas perguntou o porquê da visita, mas a única resposta foi: “Não podemos dar detalhes da investigação. ” Os policiais agradeceram a atenção e a gentileza da família e se retiraram. Mesmo sabendo que seu filho estava cansado daquela história toda, Jonas não se conteve e reiterou tudo que já havia conversado com o filho.
Se a polícia havia feito uma visita, era porque aquela situação era mais grave do que todos haviam pensado. Restava-lhe rezar para que nunca mais tivessem notícias daquele estranho e redobrar os cuidados ao andarem pelas ruas. No fim de semana seguinte, Davi foi passar o sábado na casa de uma das avós, pois os pais estavam trabalhando.
Anastásia, mãe de Bruna, sempre foi uma matriarca severa; educou seus quatro filhos com rigidez e disciplina, cobrava notas acima da média e sempre ensinou a importância do trabalho. Bruna sempre se esforçou para orgulhar a mãe, apesar das raras demonstrações de aprovação dela. Tudo mudou quando Anastásia foi avó; mesmo sem saber demonstrar carinho, ela adorava a companhia dos netos e fazia todas as suas vontades.
Não era raro Bruna e Anastásia discutirem por causa dos excessos de mimos, mas as discussões não iam longe. Afinal, Bruna não iria começar a contrariar a mãe agora em sua terceira idade. Anastásia morava em um apartamento espaçoso, com sala ampla e três quartos; apesar de grande demais para apenas uma pessoa morar, Anastásia sempre recebia a visita de algum dos três filhos, dos netos e também de uma irmã com quem sempre foi muito próxima.
Nas raras vezes que o lar ficava vazio, ela aproveitava para descansar, pois sabia que logo algum parente chegaria sem ter avisado antes. O prédio em que morava também era grande, com quatro blocos e dezenas de apartamentos. O play do prédio era espaçoso, tinha uma área coberta que era usada de salão de festas e uma área a céu aberto onde as crianças sempre brincavam, além de um escorrega e de um balanço.
O play também tinha uma mesa de totó e uma mesa de pingue-pongue. Todas as crianças conheciam Davi e gostavam dele, apesar de ele visitar o prédio poucas vezes por mês. Naquele dia, Davi estava brincando de três cortes com os colegas, vencendo quase todas as partidas.
Um menino especialmente competitivo estava se esforçando para eliminar Davi e bateu na bola com força demais, arremessando-a no muro do play e fazendo a bola sair para fora do prédio. Enquanto as outras crianças reclamavam, Davi disse: “Não tem problema, eu vou buscar,” e saiu correndo sem esperar respostas. O menino saiu pelo portão do prédio, deu a volta no quarteirão e não pôde acreditar no que viu: sentado no chão da rua, com as costas apoiadas em um poste, estava.
. . "Aquele mesmo homem da semana anterior, ainda mais magro e sujo, sempre olhando para o chão.
Davi sentiu um frio na barriga e paralisou por um momento. Os adultos haviam lhe dito para ficar longe de desconhecidos e para chamar a polícia se visse aquele homem de novo. Ainda assim, Davi sentia vontade de ajudá-lo.
Enquanto pensava, o homem ergueu os olhos e viu Davi. Ele não fez nada, apenas observou. O que será que ele estava pensando?
Ele era mesmo um homem perigoso ou era só alguém com medo? Afinal, quem não sentia medo? Uma coisa Davi havia percebido: os adultos haviam deixado bem claro, nos últimos tempos, que eles também sentiam muito medo.
Talvez esse fosse o caso daquele homem. Davi se aproximou, mas não sentou ao lado do homem. Desta vez, ficou a alguns metros de distância e deu bom dia, sem receber resposta.
"Você lembra de mim? Nos vimos semana passada. Desculpe por minha mãe ter gritado com você; ela só estava preocupada comigo.
" Mas o homem continuava em silêncio. "Onde está sua família? ", tentou outra abordagem.
O homem estreitou os olhos e murmurou: "Família. " Davi tinha esperanças de que iria conseguir compreender aquele homem e, assim, conseguiria ajudá-lo. "Você tem pai e mãe?
Talvez irmão ou irmã? Filhos? " O homem parecia perdido em pensamentos, mas logo depois seus olhos perderam a expressão, voltando a apenas olhar para baixo.
Davi respirou fundo, frustrado por não conseguir ajudar aquela pessoa. Talvez os adultos tivessem razão. No fim das contas, foi quando Davi teve uma ideia: realmente, os adultos tinham razão.
Davi não conseguiria ajudar aquele homem, então só restava uma coisa a fazer: a coisa certa. Davi deu meia volta e correu por dois quarteirões, parando de correr apenas para atravessar as ruas. Ofegante, mas sem perder o fôlego, o rapaz chegou ao seu destino: era um prédio de três andares com fachada cinza e preta e com portões e janelas altos.
Era a delegacia de polícia do bairro. Mais decidido do que nunca, Davi entrou na delegacia, logo chamando a atenção de todos os presentes. Os policiais e outros funcionários conheciam a vizinhança, mas não conheciam Davi, por ele visitar o bairro só às vezes.
Uma policial se apressou em atender o menino; seu nome era Marcela, uma moça que havia se formado na academia de Polícia há menos de um ano e que dava atenção especial para todos os casos que envolviam crianças. Mesmo sabendo que poucos crimes graves aconteciam naquele bairro, ela não conseguiu evitar de imaginar dezenas de possibilidades ao ver uma criança entrando sozinha na delegacia. "Talvez os pais ou irmãos daquele menino estivessem em perigo ou, então, alguma outra criança havia se machucado.
" Disfarçando a surpresa e apreensão, Marcela atendeu Davi de imediato, dizendo: "Bom dia. Como posso ajudá-lo? " Davi contou tudo — desde o que aconteceu na semana anterior até a conversa que havia acabado de ter com o homem.
Contou como o conheceu, contou do sanduíche, da repercussão que a história havia dado na escola, da visita dos policiais à sua casa e da rua em que o homem estava naquele exato momento. Se os policiais se apressassem, ele estaria lá ainda, mas Davi frisou o tempo todo que o homem não havia feito nada de errado e, sim, que ele era alguém com medo e que precisava de ajuda. A policial ficou ainda mais surpresa e apreensiva e tratou a situação com a seriedade que ela merecia.
Os policiais trocaram telefonemas, reviraram alguns documentos e acessaram arquivos no computador, comparando os relatos do menino com as informações que eles já tinham. A mulher garantiu que a polícia iria resolver aquela situação. Três policiais foram enviados para procurar o homem, enquanto ela própria iria acompanhar Davi de volta para a casa da avó.
Davi insistiu em ir ver o homem, pois queria ajudar, mas a policial não permitiu. Por dentro, Davi ficou mais uma vez frustrado, mas obedeceu; ele já havia desobedecido os adultos vezes demais e compreendia que era melhor seguir as orientações deles, ainda mais vindo de uma policial. Vovó Anastasia ficou assustada quando abriu a porta e viu seu neto com uma policial, mas logo ficou tranquila ao ouvir os relatos do que havia acontecido.
Ela abraçou seu neto e disse: "Você fez a coisa certa. Vem, vou te dar uma taça de sorvete. " De noite, quando Bruna foi buscar Davi, Anastasia contou o que havia acontecido.
Ela frisou que Davi havia se comportado de modo exemplar, que falou com as autoridades e que aquele assunto estava de uma vez por todas resolvido. Bruna ficou aflita, mas feliz, tanto pela atitude do filho quanto pelo fato dos policiais terem resolvido aquela situação. Ela não sabia que fim levaria aquele estranho e nem queria saber; só o que importava era que seu filho estava bem.
Davi ficou feliz que os adultos estavam mais tranquilos e agradeceu pelos elogios que recebeu, mas por dentro ele queria saber o que havia acontecido com aquele homem e rezava para que ele tivesse recebido a ajuda que precisava. A semana seguinte pareceu ter voltado à normalidade, sem que a família imaginasse que suas vidas estavam prestes a mudar para sempre. Jonas, trabalhando como motorista e procurando emprego no pouco tempo que sobrava, e Bruna, trabalhando 10 ou 12 horas por dia, enquanto Davi estudava, ajudava a cuidar da casa e brincava sempre que podia.
Na quinta-feira, alguém bateu na porta. Jonas e Bruna se olharam e engoliram em seco. Eles não queriam mais surpresas.
Jonas esfregou o rosto com as mãos, exausto, e abriu a porta. "Boa noite. É aqui que mora a família do Davi?
" perguntou uma senhora na casa dos 50 anos. Ela vestia uma blusa branca de manga comprida e uma saia longa e amarela. "Desculpem vir sem avisar.
Eu me chamo Tânia e vim para cá assim que soube que foram vocês que encontraram o meu marido. " Jonas e Bruna ficaram confusos, sem conseguirem entender do que aquela mulher. " Estava falando nítidamente, feliz e ansiosa, quando ela começou a explicar que, há alguns meses, Luí Fernando, o marido de Tânia, estava com fortes dores de cabeça e achou melhor ir ao hospital.
Lá, o médico passou alguns exames, mas acreditou que era improvável que o caso fosse grave. Acontece que os exames identificaram uma meningite e Luí Fernando foi internado naquela mesma hora. O médico disse que, se Luiz só tivesse ido ao hospital no dia seguinte, seria tarde demais.
O período de internação foi angustiante, pois poucas pessoas sobreviviam a uma doença tão grave, e menos ainda sobreviviam sem sequelas. Felizmente, Luiz Fernando conseguiu se curar; porém, os médicos explicaram que ele sofreria de perda de memória por um tempo. A princípio, os sintomas eram leves.
Luiz Fernando confundia os dias da semana e trocava os nomes de objetos. Luiz, Tânia e seus filhos levavam a situação com leveza, apoiando o homem e rindo amigavelmente de algumas trocas de palavras. O próprio Luiz era quem fazia mais piadas quando se pegava esquecendo de algo.
Ao passar dos dias, ele começou a se recuperar, até que se sentiu seguro de andar na rua sozinho. Depois de meses, nas primeiras vezes, ele havia dado apenas uma volta no quarteirão e disse que reconhecia as ruas, apesar de não lembrar os nomes delas. Tânia sempre ficava com o coração na mão, apesar da felicidade de ver a recuperação do marido.
Até que um dia, ele saiu para dar uma volta e demorou para voltar. Depois de uma hora, Tânia já estava desesperada, ligou para a polícia e rodou o bairro inteiro perguntando se alguém havia visto seu marido. Já fazia um mês que Luí Fernando havia desaparecido, e a polícia procurava por ele pela cidade inteira, sem sucesso.
A própria esposa dedicava seus dias a procurar o marido, distribuindo avisos pela internet e andando pelo seu bairro na esperança de encontrá-lo perdido entre uma rua e outra. Ela mal pôde acreditar quando soube que a polícia havia encontrado seu marido e ficou ainda mais grata quando soube que havia sido graças a um menino. Aparentemente, todos do bairro tinham ouvido a história de um menino que havia dado um sanduíche para um homem na rua com a mesma descrição de Luí Fernando, e não foi difícil para ela encontrar a família dele.
E lá estava ela, agradecendo pessoalmente por Davi ter ajudado Luí Fernando a reencontrar sua família. Jonas e Bruna ficaram de queixo caído; ninguém havia imaginado que aquele homem estranho na praça era, na verdade, alguém perdido da família e precisando de ajuda—ninguém, exceto Davi. Tânia fez questão de ouvir a versão deles da história e ficou ainda mais agradecida quando conheceu melhor aquelas pessoas que haviam salvado a vida do seu marido, em especial o gentil menino que quis ajudá-lo.
"Desde o primeiro momento que o vi, tão jovem, você já é um exemplo para todos nós", ela disse, depois de ouvir a história e de agradecer ainda mais. Tânia anunciou que seu agradecimento não seria apenas em palavras. "Sua família salvou a minha família.
Então, eu preciso fazer tudo que está ao meu alcance para recompensá-los. " Luí Fernando precisava de acompanhamento profissional, ainda mais depois de ter passado tantos dias na rua. Portanto, Tânia convidou Bruna para ser cuidadora de Luí Fernando.
Como ela já tinha mãe e tia idosas, também garantiu que Bruna continuaria contratada mesmo depois que Luí Fernando estivesse completamente recuperado. O pagamento oferecido era ainda maior do que todos os pagamentos que Bruna recebia das três famílias com que trabalhava, e ela não precisaria mais trabalhar dois turnos seguidos nem fazer plantão. Por acaso, Luiz Fernando também era engenheiro, e a empresa em que ele trabalhava ainda não havia se reestruturado por completo desde que ele entrara em licença médica.
Com certeza, eles precisavam contratar um engenheiro novo para a equipe. Naquele mesmo mês, Jonas estaria voltando a atuar na sua área. Por fim, Tânia se comprometeu a patrocinar os estudos de Davi até que ele terminasse a faculdade.
Era ele a quem ela devia a maior gratidão, então jamais faltaria nada para o menino. A família não conseguia acreditar no que estava acontecendo e até disseram que não poderiam aceitar aquilo tudo, mas Tânia estava irredutível e até disse que, na verdade, era tudo pelo Davi, e é claro que os pais não iriam recusar que o filho tivesse o futuro garantido. E, realmente, a vida de Davi e de sua família só mudou para melhor.
Bruna trabalhou na casa de Tânia e Luís por dois anos, até que Luí Fernando estivesse completamente recuperado. Depois disso, passou a cuidar da mãe de Tânia. Jonas foi trabalhar na mesma empresa em que Luiz trabalhava e se dedicou para se tornar um funcionário indispensável, sendo até mesmo promovido dentro de poucos meses.
Com a melhoria financeira, a família pode finalmente dar entrada em um imóvel próprio, um apartamento de dois quartos que não era luxuoso, mas era perfeito para a família. A maior alegria de Davi foi ver os pais com um quarto para eles e a sala separada para refeições, para receber visitas e com bastante espaço para brincar. Davi pôde estudar na escola em que tanto gostava, até se formar no ensino médio, quando passou em primeiro lugar no vestibular e ganhou todos os livros da faculdade de presente de Tânia e Luí Fernando.
As duas famílias continuaram próximas pelo resto da vida, sempre se ajudando e se fortalecendo. Davi cresceu, e a cada dia que passava, inspirava mais pessoas com sua humildade e eterna vontade de ajudar seus colegas de escola, e depois os da faculdade e do trabalho. Os professores, familiares e amigos mais próximos todos concordavam que Davi era um rapaz inesquecível e um exemplo de cidadão.
Até os mais velhos aprendiam com ele e tinham sua fé na humanidade renovada, graças ao rapaz que sempre enxergava o que havia de bom dentro das pessoas, independente do que era visto. Por fora, Davi nunca deixou que qualquer elogio inflasse seu ego; muito pelo contrário, se inspirava neles para ser uma pessoa a cada dia melhor. E aí, gostou da história?
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