Cara, o Brasil é o único país do mundo que entrou no circuito oficial da história com uma obra prima da literatura! Uma carta magnética, uma carta espetacular, uma carta repleta de fragrância e minúcia, com todos os detalhes, que faz o elogio da tolerância, uma carta com olhar acurado, etnográfico, uma carta antropológica, uma carta que é uma profecia, sobre um lugar maravilhoso, sobre um novo mundo paradisíaco, uma profecia que os brasileiros 521 anos depois não foram capazes de concretizar. Por quê?
Porque muitos de nós não lemos a carta de Pedro Vaz de Peninha. . .
de Pero Vaz de Caminha, o primeiro cronista do Brasil, um homem espetacular, um homem fantástico, autor de uma carta inebriante que tu vai ficar sabendo a história por trás dela como nunca te contaram. "É a sua, é a nossa, é a minha carta de Pero Vaz de Caminha". A carta do Pero Vaz de Caminha, são vinte e sete páginas de vinte e nove centímetros por vinte e nove centímetros, uma folha desse tamanho, espetacular, maravilhosa, na qual esse grande cronista, que na verdade era um contador, mas não um contador de histórias, ele era um contador no sentido de contabilidade, de contabilista.
. . Sim, ele estava seguindo na expedição do Cabral até a Índia, porque ele ia ser o o contador da feitoria de Calicute, né, onde inclusive ele chegou e onde ele morreu.
Só que quando a esquadra chega em Porto Seguro, ele resolve se tornar o grande cronista dessa expedição. Ele não foi o único que escreveu. Inclusive, ele não era o cronista de ofício.
Ele não era o redator oficial. Porque se supõe que várias, muitas cartas tenham sido escritas e mandadas pro rei Dom Manoel descrevendo aquele que seria o descobrimento oficial do Brasil. O problema é que todas elas sumiram, desapareceram, né?
Caíram no maior ostracismo, que nem o próprio Brasil, né? O Brasil descoberto oficialmente em 1500, só entra mesmo no circuito da história a partir de 1549 com a criação do Governo Geral e nem assim, nem assim, sabe? Era uma coisa mediana.
O Brasil só entra mesmo no circuito depois que começa a produzir o pó branco que vicia, o açúcar. A essas alturas o rei Dom Manoel já tinha morrido, o filho dele Dom João III já tinha morrido, aí quem assume o trono é o rei Dom Sebastião que com dezenove, vinte anos de idade vai lá desafiar os árabes do Marrocos, morre, morre, Portugal fica sem herdeiro por pro trono e a partir de 1580 se inicia a era da dominação, da União Ibérica, dominação espanhola, e esses documentos todos ficam meio perdidos paparárá, e em 1755 houve um enorme terremoto em Lisboa, né? Com oito graus na escala Richter, com um tsunami de dezessete metros de altura que fez com que sumissem muitos e muitos documentos dos descobrimentos portugueses.
A carta do Caminha milagrosamente, luminosamente sobreviveu, mas ninguém nem sabia que ela existia, cara. Ela só foi redescoberta lá na Torre do Tombo em Lisboa em fevereiro 1773, pelo guarda-mor do arquivo José Seabra da Silva, um homem que tinha que ser canonizado, porque descobriu de repente por acaso ali essas vinte e sete folhas mais ou menos desse tamanho assim, só que a letra do Caminha era um pouco melhor que a minha, né? Descobriu essa carta, e não acreditou, porque ela era um relato circunstancioso, ela tinha a agudeza das observações, ela tinha cor, ela tinha aroma, ela tinha minúcia, ela tinha detalhes, ela descrevia os indígenas do Brasil "de bons narizes e bons corpos", ela descrevia inclusive que os homens peludos estavam na proa e os homens pelados estavam na praia, minha frase favorita que aliás é minha mesmo, só que realmente quando o Caminha e o Cabral veem aqueles indígenas desnudos, né, eles eles os descrevem como se eles tivessem a inocência do paraíso, "eles não a menor vergonha de mostrarem as suas vergonhas como não tinham onde mostrar o próprio rosto", e eles consideram isso uma inocência típica de quem ainda vivia no paraíso, e ainda descreve as mulheres nativas e diz "tinham as suas vergonhas tão altas e tão cerradinhas e não tinham vergonha alguma de mostrá-las", né?
Ele descreve a chamada semana de Vera Cruz, os dez dias incríveis que a Esquadra de Cabral passou lá nas naquelas praias de águas translúcidas e areias faiscantes do sul da Bahia. Descreve um momento mágico, descreve um momento em que um marujo pega uma gaita, começa a tocar e o Diogo Dias, que era um homem de alegria, começa a dar cambalhotas, que ele chama de "saltos reais". Diogo Dias começa a dar saltos reais, ou seja, cambalhotas e os nativos ficam totalmente encantados com a habilidade daquele marujo português.
Infelizmente esse Diogo Dias não é o irmão do Bartolomeu Dias, né, o grande navegador, ele próprio, Diogo Dias também, um grande navegador. Era um homônimo dele. Durante muito tempo se pensou que esse Diogo Dias fosse o irmão do Bartolomeu Dias, porque tanto o Bartolomeu Dias quanto o Diogo Dias, irmão dele, estavam na frota.
Mas não era esse marujo, esse marujo que deu cambalhotas enquanto um outro tocava acordeão, e aí eles dançam de mãos dadas com os indígenas nesse momento mágico que revela que podia ter uma havido uma simbiose entre portugueses e nativos, porque aqueles dez dias foram dias paradisíacos, o Caminha também descreve com minúcias como é que se deu a primeira missa, na verdade foram duas missas, né? Uma missa na Coroa Vermelha, uma barreira de corais que existe até hoje na frente de Porto Seguro, e depois a outra missa mesmo rezada em terra firme. Se sabe, se supõe, que no mínimo todos os capitães, né.
. . a esquadra do Cabral tinha treze embarcações.
Então, se supõe e era óbvio que fosse assim, que todos os capitães dessas embarcações tivessem mandado cartas para o rei, né. E também se sabe que nem no filme "Central do Brasil", os marujos que sabiam escrever cobravam um dinheirinho e aí os marujos analfabetos ditavam para eles cartas que eram enviadas para o reino. Porque quando o Brasil foi descoberto, a esquadra ia seguir pra Índia, né?
Mas uma uma nau, na verdade uma naveta, a naveta dos mantimentos comandada por um cara chamado Gaspar de Lemos, essa seguiu de volta para Portugal com as cartas pra comunicar pro rei que uma nova terra, que os portugueses provavelmente já conheciam, né, tinha sido oficialmente descoberta. E essa nau parte, certamente com a carta do próprio Pedro Álvares Cabral, com a carta dos principais comandantes e com cartas dos marujos que queriam mandar notícias pras suas famílias. Então essa nau ficou conhecida como a nau das saudades, porque a maior parte daqueles homens que enviou aquelas cartas jamais voltaria pra Portugal, até porque logo em seguida ele saem, no dia dois de maio, eles deixam a Bahia no dia dois de maio, e no dia doze de maio, dez dias depois, eles pegam uma tormenta gigantesca no cabo das tormentas, o cabo da boa esperança.
. . Um tufão, praticamente, e aí cinco naus e caravelas afundam e mais de quatrocentos homens morrem.
Muitos deles deviam ter escrito essas cartas pra suas famílias que ainda nem haviam chegado em Portugal. E dentre essas cartas estava a carta do Pero Vaz de Caminha. Mas como eu já falei o Pero Vaz de Caminha não era o cronista oficial dessa expedição.
Ele estava sendo enviado pra ser o contador, né, no sentido de contabilidade, da feitoria de Calicute, mas ele escreveu para o rei por um motivo muito especial: o genro dele, um tal Jorge Osouro, ou Jorge Osório, tinha sido condenado ao degredo na ilha de São Tomé. A ilha de São Tomé era uma ilha terrível, né? Tanto é que pra lá foram enviadas as crianças judaicas cujos pais não permitiram que se convertessem ao cristianismo na grande perseguição aos judeus que se deu em Portugal no reinado do Dom João II.
E aí essas crianças ficaram conhecidas como as crianças dos lagartos. Lagartos eram os crocodilos e jacarés que existiam nessa ilha de São Tomé que devoraram várias dessas crianças, como os registros históricos provam, né? Era uma ilha terrível, uma ilha insalubre, uma ilha com malária, com febres palustres, e cheia de crocodilos, né?
E era um território de degredo. E o marido da filha do Pedro Vaz de Caminha, ou esse Jorge Osório ou Osouro, tinha batido num padre, tinha dado uma surra num padre. .
. Hehe, alguma coisa o padre deve ter feito, e aí por causa disso foi mandado pro exílio nessa ilha, e aí o Pero Vaz de Caminha faz essa carta extraordinária, magnífica, fantástica e a envia para o rei e as últimas. .
. nas últimas frases dela ele diz "e se vossa alteza quiser me conceder um favor, que mande voltar para o reino meu genro Jorge Osoro, que se encontra no degredo em São Tomé" e como ele ia morrer. .
. O Caminha foi morto no dia dezesseis de dezembro de 1500, quando um exército coligado de mercadores árabes e de rajás indianos atacou a feitoria que o Cabral tinha criado em Calicute, né? Foi um ataque terrível e o Pero Vaz de Caminha morre ali com cinquenta e poucos anos.
Ninguém sabe direito a idade dele. Ele deve ter nascido por volta de 1450. Ele era do que se chama pequena nobreza.
Ou seja, um burguês que tinha virado o cavaleiro da das casas reais do rei Afonso Quinto depois do próprio rei Dom João II e do rei Dom Manuel, ou seja, era um cara bem relacionado na corte mas nunca foi nobre, nunca foi rico, né? Era um homem que acreditava no poder do dinheiro e no poder das ciências contábeis, né? Mas escrevia magnificamente bem, magnificamente bem, tanto é que é chamada como a certidão de batismo do Brasil.
E ela fica lá desaparecida até 1773 quando é descoberta por este guarda-mor, mas só ele a turminha dele leu. Impressionante. Porque só em 1817 é que ela seria publicada pela primeira vez em livro.
E quem a publicou foi o padre Aires do Casal, num livro chamado "Coreografia Brasílica", aqui no Rio de Janeiro, só que o bom padre achou de bom tom censurar as partes em maior desacordo com o decoro, então suprimiu a descrição das indígenas nuas, dos próprios índios nus, e a descrição corporal que o Caminha faz deles, mesmo com o Caminha ressaltando que aquela nudez virginal era paradisíaca. Mas o padre "nananão, essa parte aqui não". Portanto é considerada a primeira publicação dessa carta aquela que o grande Capistrano de Abreu, que foi diretor da Biblioteca Nacional, fez em 1908!
Em 1900 foram os quatrocentos anos do descobrimento do Brasil. E o Capistrano de Abreu organizou uma grande festa no Rio de Janeiro, na Biblioteca Nacional, tal, e aí falou muito sobre a carta do Pero Vaz de Caminha, e em 1908 ele publicou um livro maravilhoso, que tu deveria ler, se bem que a primeira coisa que tu deveria fazer era ler a carta do Pero Vaz de Caminha! Todo mundo deveria ser, aspas, "obrigado" a ler a carta do Pero Vaz de Caminha, porque cara, não é uma obrigação, é um prazer, é uma delícia, a carta é mágica, a carta é imagética, a carta é deslumbrante, a carta é sensacional, né?
Conta desde a saída de Lisboa no dia 9 de março de 1500 até a chegada no Brasil no dia 22 de abril de 1500. Aliás, tem um momento incrível, né? Porque a viagem foi muito tranquila, durou apenas 44 dias, foi muito rápido, muito rápido, deu tudo certo.
A única coisa que aconteceu foi que uma das naus, do Vasco de Ataíde, desapareceu, sem que se pudesse saber por quê, né, "comeu-a o mar". Olha o que que diz o Pero Vaz de Caminha. "Comeu-a o mar".
Se supõe que uma nuvem de poeira saariana tenha soprado ali mais ou menos perto das ilhas Canárias, né? Ou então um vulcão entrou em erupção. Não.
mas nuvens de poeira do Saara realmente cobriam totalmente, ainda cobrem, essa parte do oceano, e aí se supõe que com a pouca visibilidade essa nau do Vasco de Ataíde tenha batido num banco de corais que existe ali e blublublu, afundou. Mas fora isso não houve nenhum incidente, né? Não teve assim "o Brasil foi descoberto por acaso por causa duma tormenta", "o Brasil foi descoberto por acaso por causa de uma calmaria", "o Brasil foi descoberto por acaso.
. . ".
Não, o Brasil não foi descoberto por acaso, cara, eles já sabiam, eles já sabiam que o Brasil estava aqui, o Tratado de Tordesilhas é de 1494, né. Mesmo assim é essa chegada do Cabral e do Caminha que entra pra história, com toda razão nesse sentido, como o descobrimento oficial do Brasil, né, pela ótica portuguesa, e aí a carta fica desaparecida, só sai, só é publicada na íntegra em 1908 junto com esse maravilhoso estudo do Capistrano de Abreu, "Vaz de Caminha e sua carta". Tem uma versão também extraordinária da carta que foi publicada nos anos sessenta com adaptação.
. . porque é um português castiço, né?
É um português quinhentista, se ele não é adaptado pro português dos dias de hoje, tu não entende chongas, né? Então tem várias versões, várias adaptações da carta à linguagem dos dias hoje, mas a melhor delas foi feita pelo Rubem Braga, o grande, o extraordinário cronista Ruben Braga, e ainda tem uma edição com as ilustrações do Caribé, o magnífico pintor baiano, nascido por azar na Argentina, mas naturalizado baiano, ilustrações do Caribé lindas, magníficas, e um texto do Caminha adaptado pelo Rubem Braga, também fascinante, né? Essa na verdade não é a única carta que sobreviveu, né?
Duas outras cartas dessa expedição sobreviveram. Uma delas é a chamada carta do mestre João. O mestre João era o cirurgião, era o médico particular do rei Dom Manoel e fazia parte da frota do Cabral como astrônomo e astrólogo, e é ele que desce pra praia num determinado dia que não se sabe qual, e mede e pesa, como se diz, "pesa" as estrelas, mede as estrelas, e descobre sabe o quê?
Descobre não, né? Mas ele que batia o Cruzeiro do Sul. Naquele dia que muito provavelmente é o dia 29 de abril de 1500 ele olha praquele céu límpido acima de Porto Seguro e vê uma constelação em forma de cruz e a batiza de cruzeiro do sul.
Essa carta também sobreviveu. Essa carta também foi encontrada e aliás é uma loucura porque o mestre João que era médico, diz que não não pode descer em terra desde o dia 22 de abril até o dia 29 de abril, sete dias, porque ele estava com uma enorme coçadura na perna, que era evidentemente fruto assim de uma micose, entendeu? Fruto de alguma infecção, de alguma coisa que ele tinha pego a bordo, porque cê sabe que a bordo daquelas naus e caravelas assim era, as condições sanitárias e higiênicas eram péssimas, e até o médico particular do rei tinha pego uma doença de pele.
E a outra carta que sobreviveu é a carta que se chama "carta do piloto anônimo" que foi escrita pelo. . .
piloto anônimo. Sabe como é que é o nome do piloto anônimo? Não, não se sabe, como é que é o nome, porque era anônimo.
Mas também é uma carta incrível, e essa é mais completa porque essa conta da saída de Portugal, a chegada no Brasil, a ida até a Índia e a volta. E ela conta uma história muito incrível porque o próprio Pero Vaz de Caminha diz que no dia que eles foram embora eles deixaram dois degredados e dá o nome de um deles: o Afonso Ribeiro, né? Por isso que se sabe o nome do primeiro degredado que ficou no Brasil e ficou chorando na praia "ai, pelo amor de Deus, não me deixa nesse lugar com sol, com frutas maravilhosas, com uma água bem quentinha e um monte de mulher pelada, me leva, me leva embora nesse navio horroroso, imundo, de volta pra Portugal, cheio de peste", né?
Ficou chorando na beira da praia o Afonso Ribeiro, gostaria de saber por quê. E o Afonso Ribeiro seria recolhido pela expedição do Américo Vespúcio em 1501, né! E o nome dele está citado na carta do Caminha.
Só que na carta do piloto anônimo, o piloto anônimo diz o seguinte: "deixamos nessa terra dois degradados, porém na noite que antecedeu a nossa partida, cinco grumetes fugiram a nado das naus e se deixaram ficar nesta terra de frutos dulcíssimos". Hahaha! Hein?
Os grumetes, espertinhos, tinham quinze, dezesseis, dezessete anos de idade, por aí, não se sabe que fim levaram esses grumetes mas eu adoro imaginar que eles tiveram um fim melhor que o fim do Pero Vaz de Caminha, pelo menos o fim terreno. Por quê? Ao saber que o Caminha tinha sido morto, o rei Dom Manuel perdoa o genro dele, manda o genro vir de volta pra Portugal e o nome do Pero Vaz de Caminha fica esquecido por mais de trezentos anos, mas hoje e sempre o nome de Pedro Vaz de Caminha refulge como o de um escritor espetacular forjou uma profecia, uma profecia de um país magnífico em que se plantando tudo dá, e que o Brasil, nós brasileiros não fomos capazes de cumprir.
É isso aí. Leia Caminha e a tua vida vai melhorar. Tchau.