Era uma vez um país de terras vastas, de muitas riquezas naturais e que encantava pela sua diversidade cultural. Nesse mesmo país quase 7 mil pessoas morreram de tuberculose em um único ano. Esse é o Brasil de 1980.
Milhares de pessoas enfrentando por conta própria não só tuberculose, mas malária, sarampo, gastroenterites e muito mais…. Milhões de medicamentos distribuídos sem um controle sanitário adequado. Um país com um sistema de saúde precário, centralizado em Brasília, incapaz de entender a realidade de cada região e de direcionar os recursos para controlar os males vividos pela população.
No quinto e último episódio da série Saúde é Investimento, eu vou te mostrar a evolução de uma ferramenta que surgiu para corrigir esses problemas. Essa ferramenta se chama SUS. E mesmo com seus defeitos, muito além de um sistema único de saúde, o SUS é, na verdade, o motor da economia.
A falta de saúde gera custos muito maiores do que os investimentos necessários para garantir uma população saudável. Algo que nossos governantes deveriam saber. A falta de saúde é um fardo que o país inteiro carrega.
E a solução… bom, para entendê-la, vamos olhar para a história da tuberculose e do próprio SUS. Por muito tempo, a tuberculose foi um problema ignorado pelo poder público. Não por acaso, seu apelido era: a “praga dos pobres”.
É claro que a bactéria causadora da tuberculose não escolhe as suas vítimas pela classe social. Ela é transmitida pelo ar e pode infectar qualquer um que tenha contato próximo com alguém doente. Inclusive, um quarto da população mundial, rica ou pobre, carrega a bactéria da tuberculose no corpo sem saber.
Mas a doença raramente se manifesta em pessoas saudáveis. Quem fica doente, geralmente são aqueles em situação de vulnerabilidade, como pessoas com baixa imunidade, desnutridas, e aquelas vivendo em condições precárias. Agora imagine que em 1980, Geraldo, um senhor de meia idade apresentou tosse persistente, febre, cansaço e uma dor no peito.
Sem nem imaginar que carrega um microorganismo infeccioso em seu corpo, Geraldo passará por uma verdadeira jornada para se livrar de uma das bactérias mais comuns do mundo. Primeiro, ele precisará do diagnóstico, o que no caso da Tuberculose é algo muito complicado. Exige infraestrutura, tempo e profissionais capacitados para identificar o patógeno.
Após receber o resultado de seus exames, Geraldo precisará passar por um longo tratamento com altas taxas de abandono. Precisará de novos exames para acompanhar a evolução da doença e do tratamento. Precisará de orientação para evitar contato com as pessoas de sua família.
E esses familiares também precisarão ser monitorados para evitar que a bactéria se espalhe. Mas em 1980, esse processo que deixaria Geraldo livre da tuberculose, não era uma realidade para todos no Brasil. Agora imagine que Geraldo é o provedor da família.
Incapacitado pela tuberculose, ele teve que parar de trabalhar por algum tempo, diminuindo drasticamente a renda em casa. A tuberculose mostrou com todas as letras que a pobreza adoece e adoecer empobrece ainda mais. Até meados dos anos 80, sair desse ciclo era praticamente impossível no Brasil.
Nessa época, a saúde dos brasileiros era representada por dois pilares: o da prevenção e o da cura. O pilar da prevenção era promovido pelo Ministério da Saúde, coordenando ações como a vacinação, e o pilar da cura pelo Ministério da Previdência Social, com atendimentos e tratamentos médicos que só estavam disponíveis para quem contribuía para a Previdência Em outras palavras, os brasileiros estavam separados em 3 categorias: os que podiam pagar pelos serviços médicos da rede privada; os que não tinham condições, mas por terem carteira assinada eram assistidos pela saúde pública; e os que não tinham direito a nada disso e dependiam de caridade quando estavam doentes. Nessa última categoria estavam milhões de brasileiros.
Antes do SUS o nosso sistema de saúde que nós tínhamos como sistema de saúde. Ele atendia pessoas que tinham vínculo empregatício. Então, aquele trabalhador que, por algum motivo ficava doente, ele e sua família era atendido ali pelo sistema de saúde.
As pessoas que não tinham um emprego, Ele era tratado como indigente e aí só tinha pra ele aqueles horários que sobravam, quando tinha algum serviço que não tinha sido ocupado pelas pessoas que eram vinculadas, que tinham carteira assinada. Então, grande parte da população brasileira era desassistida. Ela não tinha onde ir e quando ia era atendida como um favor.
Definitivamente, nessa época o Brasil não tinha saúde. Como esperar que um povo sem saúde promova desenvolvimento econômico? Na década de 80, em meio a um movimento popular que ficou conhecido como a Reforma Sanitária Brasileira nós demos o primeiro passo para mudar esse cenário.
Profissionais da saúde, políticos e líderes comunitários concordaram que era inaceitável que a saúde fosse tratada como uma mercadoria exclusiva para quem pudesse pagar. Eles também propuseram uma mudança: não dava mais para tratar prevenção e cura como entidades separadas, cada uma em um Ministério, já que saúde não é apenas a ausência de doença. Saúde é o estado de completo bem-estar físico, mental e social.
O bem-estar da população brasileira tinha que entrar na equação. Foi assim que, em 1990, foi regulamentado o sistema único de saúde, o SUS. É um sistema de saúde cuja experiência foi gerada nas experiências de trabalho comunitário ao nível de bairros, nas experiências que a igreja realizou em termos de trabalho, nas experiências que os sindicatos realizaram, nas experiências que as secretarias de saúde estaduais e municipais enfrentaram no sentido de transformar esse sistema.
Saúde é democracia! A partir desse momento, os dois pilares antigos da saúde brasileira foram demolidos. Nós passamos a ter um sistema de saúde disponível para todos que buscava combater a desigualdade social e tratar integralmente as necessidades dos cidadãos.
O desafio era fazer esses objetivos se tornarem realidade, o que tem sido um caminho árduo O maior desafio do SUS é o financiamento. A gente teve, recentemente, algumas lutas históricas para que pelo menos a gente tivesse 10% do nosso PIB investido em saúde. Nós não chegamos a isso, nunca chegamos a isso.
a gente precisa de ter fontes de financiamento contínuo. Senão não conseguimos garantir serviços A gente precisa na gestão de ter qualificação, ter pessoas capacitadas porque são financiamentos complexos, são serviços complexos E nós precisamos que as pessoas possam trabalhar tendo vínculos que não precisam se preocupar quando mudar o político ela vai ser despedida Diante de tantos desafios, podemos dizer que hoje o SUS realmente funciona? Essa é Neide, uma mulher diabética que faz acompanhamento com um endocrinologista da rede privada.
Mas há algumas semanas, ela vem sentindo enjoo e mal-estar, sintomas novos na sua rotina. Preocupada, ela pega o telefone e liga direto na clínica do seu endocrinologista para marcar uma consulta. Pode até parecer que ter acesso direto a um especialista é a maneira mais eficiente de se resolver um problema de saúde.
Mas Neide não sabe a causa do seu enjoo e mal-estar. Ela só vai descobrir se procurou o especialista certo depois de pagar pela consulta, o que pode gerar gastos desnecessários para ela e ocupar a vaga de alguém que realmente precisaria daquela consulta com mais urgência. Agora imagina se todos os usuários do SUS fizessem como a Neide.
Nós teríamos um milhão de Neides procurando todos os dias um especialista do SUS que pode não ser o mais adequado. Seria um custo e um atraso gigantesco. Por isso, o SUS atende seus pacientes de forma diferente da rede privada.
Em um primeiro momento, todo mundo é atendido da mesma forma, geralmente no posto de saúde mais próximo de casa. Lá, profissionais generalistas farão o atendimento com serviços de baixo custo que suprem a maior parte da demanda. Essa é a chamada atenção primária do SUS, a base da pirâmide de atendimento aos pacientes.
A Atenção Primária enxerga as pessoas não isoladamente, mas como um componente de uma família e uma comunidade. Por isso, os profissionais do nível primário atuam também nos espaços públicos com campanhas de conscientização e visitas domiciliares. Muito além de tratar os doentes, a atenção primária busca a prevenção de doenças, reduzindo as chances de complicações e, consequentemente, o volume de atendimentos com especialistas e seus custos.
Essa estratégia tem resultados comprovados pela ciência e retorna em benefícios para a população. Um relatório da OMS mostrou que a cada 1 dólar investido hoje na prevenção de doenças cardiovasculares, diabetes e outras doenças não transmissíveis teríamos 7 dólares de retorno até 2030. Mas a atenção primária não consegue resolver todos os casos.
Aqueles mais complexos ou de urgência são encaminhados para a atenção secundária. É nesse nível que estão as Unidades de Pronto Atendimento, as ambulâncias, os atendimentos hospitalares e alguns procedimentos médicos mais complexos. Esse seria o caso da Neide que, após se consultar >>com o médico do posto, seria encaminhada para um gastroenterologista com suspeita de gastrite.
Os casos mais complexos, como o de alguém que foi diagnosticado com câncer, ou que precisa de uma cirurgia sobem mais um degrau na pirâmide e vão para a atenção terciária do SUS. Ela engloba procedimentos altamente especializados, de alto custo, como quimioterapia, cirurgia e transplante, que exigem infraestrutura, tecnologia de ponta e profissionais capacitados O SUS trouxe a ideia de que os problemas que podem ser resolvidos na atenção primária devem ser resolvidos nessa instância, deixando a atenção secundária e terciária apenas para os casos nos quais elas realmente sejam necessárias. Essa é uma forma muito mais eficiente de investir os recursos do sistema de saúde.
É uma estratégia utilizada no sistema de saúde de países desenvolvidos, como Austrália e Reino Unido. No papel é muito bonito. Mas por alguma razão, na prática de quem precisa, o SUS deixa a desejar.
Atrasos de meses na marcação de consultas, exames e cirurgias, filas nos postos de saúde e demora no atendimento são reclamações constantes da população. Faltam médicos e profissionais de atendimento, faltam medicamentos e insumos básicos. O resultado é a sobrecarga do sistema de saúde e a prevenção de doenças é deixada de lado para focar os recursos limitados nos casos mais complexos.
Tudo isso faz com que apenas 39% dos usuários do SUS avaliem o serviço como bom ou excelente. Muitas vezes o SUS ele tem uma imagem ruim porque a experiência das pessoas no município ou na unidade de saúde. Não com os profissionais muitas vezes, mas com a demora.
Com a demora para conseguir uma consulta, às vezes uma cirurgia. O que nós precisamos agora é reconhecer as fragilidades, elas existem, e buscar soluções pra elas. Porque as soluções também existem.
Há quem prefira fazer como a Neide: pagar um plano de saúde para não “depender do SUS” e não passar por essa situação em um momento de necessidade. Mas mesmo sem perceber, essas pessoas são sim usuárias do SUS. E eu vou te contar porquê.
É o SUS que fiscaliza as clínicas médicas particulares, habilita e regulamenta os planos de saúde e define quais procedimentos eles devem cobrir. Através da Anvisa, o SUS fiscaliza a produção e a venda de qualquer medicamento ou vacina Mas essa é só a ponta do iceberg. Voltemos para o caso da Neide.
Mesmo que ela não saiba, o SUS fiscaliza a qualidade de tudo o que ela coloca no seu carrinho de compras. Através da vigilância sanitária, o SUS monitora todo o caminho que alimentos como o arroz e o feijão fizeram antes de chegar na sua cozinha. Desde os agrotóxicos usados na sua produção até o transporte, a embalagem e a comercialização E se a Neide usa água tratada para cozinhar o almoço, também é graças ao SUS, que fiscaliza as estações de tratamento de água.
Nesse aspecto, Neide é privilegiada, pois 35 milhões de brasileiros sequer têm acesso à água tratada. Ainda que todas essas pessoas tenham o direito a um atendimento médico gratuito, a falta de saneamento básico é uma falha no objetivo de promover saúde à população. E tudo que impacta a saúde da população, o que inclui saneamento básico, também impacta na produtividade.
Dá até para adaptar aquele antigo ditado popular. Prevenir, não é só melhor do que remediar, também movimenta a economia do país e garante um futuro melhor. Um bom exemplo de como prevenção é um excelente investimento é a vigilância epidemiológica, que também é responsabilidade do SUS.
Ela serve para coletar dados sobre em quem, quando e onde doenças estão acontecendo e podem acontecer. Quando integrada com a vigilância ambiental, que lida com fatores do meio ambiente que interferem na saúde humana, ações direcionadas para prevenção e controle de doenças podem ser executadas de acordo com a necessidade. É o que acontece com a dengue, em que o mosquito transmissor é combatido por ações da vigilância ambiental e os casos são monitorados pela vigilância epidemiológica.
O que não falta são estudos científicos propondo novas tecnologias para tornar esse processo mais eficiente. Um exemplo disso é um experimento envolvendo 21 cidades de Minas Gerais, em que a instalação de armadilhas para monitorar focos do mosquito da dengue evitou cerca de 27 mil casos da doença entre 2010 e 2011. Uma medida que teve um custo, mas que gerou uma economia muito maior, de 7,5 milhões de dólares que teriam sido perdidos a cada ano com gastos hospitalares e afastamentos do trabalho.
Será que os nossos governantes têm consciência disso? O problema é que o retorno de investimentos em prevenção não vem tão rápido ou nem é percebido, porque devido ao sucesso da medida preventiva, a doença não acontece. Resultados a longo prazo costumam não fazer parte da estratégia de governantes que querem retornos rápidos para sustentar uma campanha de reeleição.
Quando a gente diz que a gestão é complexa do SUS, é porque o financiamento, o dinheiro, vem de fontes diferentes. Fazer com que tudo isso converse um com o outro é o grande desafio. E, muitas vezes, isso é atravessado pela má política do Brasil.
Se o prefeito é de um partido e o governador é de um outro partido há dificuldade de conversa. Ou o presidente. Então, nós precisamos no Brasil superar essa má política e fazer a gestão para o cidadão e não visando eleições e visando curto-prazo Convencer políticos de que investimento em saúde retorna para a economia é difícil.
Parece até que nunca conseguiremos, mas basta olhar para o nosso passado e ver que isso já foi feito. Foi graças a decisões políticas baseadas em ciência que hoje a tuberculose não é a grande ameaça que foi ao Brasil de 40 anos atrás. Em 1925, nós investimos no que havia de mais avançado em medicina preventiva na época: a vacina BCG.
Em 1976 a BCG se tornou obrigatória para crianças menores de 1 ano, um trabalho bem-sucedido da vigilância em saúde. E hoje, quase 100 anos depois da vacina ser disponibilizada no Brasil, a BCG evita cerca de 40 mil quadros graves de tuberculose em crianças por ano. Demorou, mas o resultado do investimento veio.
Além de vacinas e tratamento oferecidos gratuitamente, nós temos um sistema de notificação da tuberculose que engloba rede pública e privada e agentes de saúde que buscam ativamente os casos suspeitos e em tratamento dentro de cada comunidade. Desde 1980, nós continuamente reduzimos a mortalidade da tuberculose em quase 70% Com todas as vigilâncias trabalhando integradas no sistema de saúde, finalmente, nós estamos a caminho de vencer a tuberculose. O que aconteceu com a tuberculose não é um exemplo isolado de sucesso.
Vimos como o investimento em vacinas e campanhas de vacinação conseguiu eliminar a poliomielite. O Brasil já foi modelo na história global de combate à AIDS sendo um dos primeiros países a oferecer gratuitamente os medicamentos antirretrovirais que reduziram a mortalidade de quem convive com HIV. É claro que medidas como essas têm um custo que sai do bolso do pagador de impostos, mas essas histórias nos mostram como o SUS, a partir de decisões baseadas em ciência, é capaz de promover saúde e bem-estar.
E quando todos nós temos saúde, o ganho não é só para as pessoas beneficiadas. Uma pessoa viva com saúde por mais 1 ano, é uma pessoa trabalhando, consumindo e pagando impostos por mais 1 ano. só com saúde nós conseguimos produzir, viver com qualidade.
Ela é muito importante para atividade econômica, sem garantia de saúde tanto de pessoas quanto de produtos você não tem uma sociedade que pode produzir e viver com qualidade. É a saúde que mantém a população produtiva e acelera o desenvolvimento do país. O SUS é o motor que mantém a economia e a produtividade brasileira a todo vapor.
Mas até quando vamos deixar o motor da economia enferrujar até parar? É claro que comprar vacinas, manter hospitais, fornecer atendimento, exames e tratamentos tem um custo. É claro que monitorar agrotóxicos e qualidade da água exige dinheiro.
É claro que fiscalizar queimadas, desmatamentos e investigar saltos de vírus para seres humanos é muito caro. Mas deixar a população sem esses serviços gera perdas para a economia. Temos o prejuízo dos dias de trabalhos perdidos a curto prazo e a perda de produtividade quando a doença gera consequências a longo prazo.
Sem contar com o custo e o impacto das mortes que poderiam ser evitadas. Quando chegar a hora de colocar a democracia em prática, escolha candidatos que realmente priorizam a saúde e a ciência. Quem não enxerga o valor da saúde pública de qualidade, está condenado a repetir os mesmos erros de sempre.
Saúde não é gasto, é investimento.