Ensinar exige a convicção de que a mudança é possível. Um dos princípios pedagógicos mais importantes, principalmente para o professor que trabalha com alunos vindos de famílias de baixa renda, é a consciência de que a história é uma possibilidade e que nada está determinado. Nós vimos isso nos vídeos anteriores.
O mundo não é. O mundo está sendo. O mundo é um processo histórico em permanente mudança.
É por isso que o papel da educação e o papel das pessoas no mundo não é apenas o de quem constata como as coisas são, mas o de quem intervém para participar do conhecimento e da história. Nós não somos objetos. Mas sujeitos.
Na nossa relação com o conhecimento, com a história, com a cultura e com a política, a gente deve constatar os fatos não para nos adaptarmos à realidade, mas para participar do movimento de transformação da realidade. E é curioso que em diversas outras áreas do conhecimento isso é já ponto pacífico. O conhecimento sobre terremotos, por exemplo, provocou o desenvolvimento de toda uma engenharia que nos ajuda a evitar tragédias maiores.
Não há sentido nenhum conhecer e não aplicar o conhecimento na transformação do mundo. “Constatando, nos tornamos capazes de intervir na realidade, tarefa incomparavelmente mais complexa e geradora de novos saberes do que simplesmente a de nos adaptar a ela. ” É por isso que Paulo Freire alertava para a armadilha daquela posição às vezes ingênua, mas frequentemente, para usar um termo que ele usava, uma posição “astutamente neutra” do estudioso, seja ele um físico, um biólogo, um sociólogo, um matemático ou um pedagogo, que se recusa a relacionar os conhecimentos com o mundo, porque ele tem um compromisso ideológico pela manutenção das coisas como elas são.
Não há sentido em manter o conhecimento isolado do mundo. Não há sentido em confinar o conhecimento na escola. O mundo está repleto de problemas, há muitas questões a serem resolvidas, há mais questões do que respostas, e a própria escolha da questão a ser estudada já indica o seu caráter político.
Eu estudo o quê? Estudo para quê? Não tem sentido uma política educacional que faz o elogio da resignação e ensina alunos de famílias de baixa renda a simplesmente aceitarem a se manter no seu lugar, como se o seu destino já estivesse sido decretado por alguma ordem social imutável.
Não tem sentido instruir os alunos a simplesmente se adaptarem à sua condição e aceitarem, calados, a negação de sua vida. E olha que eu mesmo já ouvi um caso que ilustra isso muito bem. Um colega professor de uma universidade federal estava fazendo uma daquelas feiras de profissões para apresentar os cursos universitários a alunos de escolas públicas.
Aí ele falou sobre universidade, pesquisa, iniciação científica e pós-graduação. E ouviu um professor de uma escola pública dizer isso para a sua turma alunos: "- Pessoal, não se iludam. Isso não é para vocês.
" A história da educação no Brasil sempre demonstrou essa tendência. Desde sempre, o ensino superior foi um espaço muito restrito, onde poucos pareciam ter o direito de desfrutar do ensino superior. Então era assim: para os ricos, universidade, MBA, cursos de gestão, de liderança.
E para os pobres, ensino médio, ou no máximo, ensino técnico, e a aceitação dessa ideologia que separa para os pobres um papel subalterno na divisão do trabalho. Lembrando que não há nada indigno no ensino técnico. E lembrando também que há técnicos altamente especializados que ganham muito bem.
O que está em questão é a ideologia dessas políticas de distribuição desigual de oportunidades. Ou seja, pobre parece que não tem o direito de escolher. Não tem o direito de ter oportunidades.
Tem que aceitar qualquer coisa e ainda agradecer! É uma ideologia oculta sob a máscara da neutralidade. Por isso Paulo Freire enxerga o valor pedagógico desse princípio de que a realidade não é inexorável.
Nós vimos nos vídeos anteriores a diferença entre estar condicionado pela história e de estar determinado por ela. Para Paulo Freire, nenhum ser humano deveria ser instruído para se adaptar às condições sociais que o desfavorecem. É preciso, primeiro, resistir a isso.
Mas é preciso dar mais um passo. A compreensão pedagógica de que o futuro é um problema, e não um destino que se deve apenas aceitar, essa pedagogia ensina que o papel do ser humano é "ser mais", que a natureza humana está em processo de autoconhecimento, e que a própria sociedade é uma organização em processo. E por isso, não é na resignação diante as injustiças que nos afirmamos.
Mas na rebeldia. Mas Paulo Freire vai além, para ele, uma das questões centrais com que temos de lidar é a superação das posturas rebeldes em ações revolucionárias que engajam os sujeitos em um processo radical de transformação de suas vidas, da cultura, da história e da sociedade. A rebeldia diante as injustiças é um ponto de partida indispensável, mas não é suficiente.
A denúncia de um mundo indigno precisa se alongar até uma posição mais crítica e, sobretudo, mais anunciadora. A transformação do mundo exige essa relação dialética entre a denúncia da situação desumanizadora e o anúncio de sua superação. Então é a partir deste saber fundamental: “mudar é difícil mas é possível”, que o professor deve planejar a sua ação política-pedagógica, seja qual for o projeto com o qual se comprometa, seja alfabetização de adultos, de crianças, formação técnica, ensino superior, o que seja.
Paulo Freire insiste muito na noção de que é uma imoralidade quando a educação apenas reproduz a realidade e, além de não atuar para a sua transformação, ainda preserva as situações concretas de miséria. Agora, Paulo Freire deixa claro que não tem nenhum sentido e nem é papel da educação impor às populações sofridas que se rebelem, que se mobilizem, que se organizem para se defender. A ideia de imposição é antagônica à noção de pedagogia da autonomia.
O que ele propõe é que ao relacionar os conteúdos de qualquer disciplina com a realidade concreta dessas pessoas, o educador deve desafiar os educandos para que eles mesmos empreguem esse saberes para refletir sobre as suas vidas e a sua realidade. E mais importante, que não aceitem que a situação concreta seja fruto de uma "vontade divina", ou do destino, e, que por isso, é algo que não pode ser mudado. E quando perguntam o que isso tem a ver com educação, Paulo Freire, em vez de oferecer a resposta, nos questiona, para que a gente mesmo possa responder.
Como alfabetizar sem conhecimentos precisos sobre aquisição da linguagem, sobre linguagem e ideologia, sobre técnicas e métodos do ensino, da leitura e da escrita? Por outro lado como trabalhar, não importa em que campo, sem ir conhecendo as manhas com que os grupos humanos produzem sua própria sobrevivência? É por isso que o educador deve compreender a leitura de mundo que os grupos populares com quem trabalha fazem do seu contexto.
Ou seja, o educador não pode desconsiderar os saberes gerados nas próprias experiências do educandos. E isso tem muito valor. E a pedagogia se torna realmente poderosa quando há vínculos evidentes entre essa experiência e os novos conhecimentos.
Esse é um ponto importante. Se de um lado o educador não deve se converter ao saber ingênuo dos grupos populares, não deve também impor o seu saber, de forma arrogante, como se só os seus conhecimentos fosse verdadeiros. É no diálogo que vai desafiando os grupos populares a pensar sobre a sua experiência é que eles começam a sentir a necessidade de superar aqueles saberes que não conseguem explicar os motivos que os levam a ser desfavorecidos.
Nesse ponto Paulo Freire faz uma crítica importante às tendências messiânicas e muitas vezes autoritárias de setores do ativismo político de esquerda. Para ele, é um grande equívoco desconsiderar os saberes das classes populares e, imaginando-se portador de uma verdade indiscutível, querer não propor, mas impor às pessoas essa suposta verdade universal. Até porque, uma das etapas importantes da pedagogia da autonomia é justamente a consciência e, mais ainda, a afirmação da sua identidade cultural.
Paulo Freire cita a fala de um morador de favela que, no seu processo de aprendizagem, se encorajou para resistir aos estereótipos e mesmo ao estigma que caracteriza a sua condição de favelado. Ele disse que passou a se orgulhar da sua própria história, principalmente ao se conscientizar que era uma história aberta, em transformação, e percebendo que não é o favelado que deveria ter vergonha de sua condição, mas sim aqueles que nada fazem para transformar toda essa realidade complexa e esse contexto social, cultural e econômico que permite e causa a favela. Então ele viu várias coisas.
Ao mesmo tempo em que percebeu que ele não deveria se constranger e se resignar pela sua condição, ele viu também que a condição de favelado não deveria ser entendida como uma condição irrevogável. Ou seja, ele tinha o dever cívico de participar para melhorar as suas próprias condições e as condições de sua comunidade, da sua vida e o seu contexto, que estão relacionados. Porque Paulo Freire deixa clara a sua perspectiva.
A dinâmica de aprendizagem não é exclusiva de uma pessoa. A experiência que possibilita essa dinâmica de trocas de saberes é necessariamente uma experiência social. Por isso que uma das tarefas fundamentais do educador é socializar o conhecimento.
É disseminar o conhecimento para a sua comunidade. É preciso ficar claro que parte significativa da culpa e da vergonha que as pessoas sentem por estar em uma determinada condição é resultado de um poder ideológico muito forte. Ele não usou o termo poder simbólico, desenvolvido por Pierre Bourdieu, mas é isso que ele quer dizer.
Pessoas e comunidades fragilizadas acabam incorporando as representações pejorativas que outros fazem para definí-las. Isso pode ser explicado a partir dessa reprodução ideológica que eles incorporam. São pessoas que, por fragilidade, desistem, e acabam abandonando a capacidade que todos temos de construir a nossa própria identidade cultural na história, que está sempre em movimento, e terminam se rendendo à definição negativa que os outros formulam para eles.
Paulo Freire citou o caso de uma conversa que ele teve com uma mulher que vivia em uma instituição de assistência aos pobres em São Francisco, nos Estados Unidos. Em determinado ponto da conversa ele perguntou: "- Você é norte-americana? " E aí ela respondeu.
"- Não. Sou pobre. " Então, veja como ela se definia.
Como se tivesse desistido de sua identidade e de sua própria nacionalidade, para resguardar o mito da norte-americanidade, que ela admirava, enquanto, em nível pessoal, ela se lamentava e se resignava com a representação que a cultura onde ela viva atribuía ao "fracasso" da sua vida. Então uma pedagogia da autonomia não pode desconsiderar essa dimensão ideológica que se opõe à construção de uma identidade e, consequentemente, impõe obstáculos ao desenvolvimento da noção de que a mudança é possível. É por isso que um programa de alfabetização em um contexto de pobreza e miséria só ganha sentido se realiza essa reflexão.
É preciso expulsar essa sombra da experiência do educando e favorecer as condições para que ele preencha essa lacuna com um espirito de autonomia e de responsabilidade. E se isso é pré-condição para o aprendizado, está claro que o educador não deve parar aí, na conscientização. O ensino da escrita e da leitura da palavra está no primeiro plano do esforço educativo.
O educador jamais deve relegar a essência da educação para um plano secundário. Em uma perspectiva democrática, não se deve nem proibir as reflexões políticas sobre a realidade e nem transformar a aula em um "comício libertador". Se fosse possível realizar uma síntese, eu diria que a tarefa fundamental de uma pedagogia da autonomia é articular a leitura das palavras com a leitura de mundo, a partir de uma postura sensível e intelectual que reconhece o poder da curiosidade.
É o que veremos no próximo vídeo. Este vídeo é uma homenagem a todos os alunos e alunas que assumiram a sua responsabilidade na luta em favor da educação. Eu queria deixar claro, mais do que o meu apoio, a minha admiração pela coragem e pela disposição em transformar essa realidade.