Meu nome é Veranice, mas todo mundo me chama de Vera, desde que me entendo por gente. Hoje tenho 74 anos e quando olho para trás, parece que foi ontem que eu era aquela menina de 17 anos, sonhando acordada com o dia do meu casamento. Naquela época, no interior, casar cedo era o destino de quase toda a moça. As colegas da escola iam sumindo uma por uma, trocando os cadernos por panelas e fraldas. Eu não via a hora de ser uma delas. O clemente apareceu na minha vida quando meu pai quebrou a perna e precisou de
um marceneiro para fazer muletas especiais. Ele tinha 22 anos, era carpinteiro, filho do seu Geraldo que tinha o armazém. Passou três dias indo lá em casa, medindo, ajustando, conversando com meu pai enquanto trabalhava. Eu ficava espiando da cozinha, fingindo que estava ajudando minha mãe. Ele era alto, com aquele cabelo escuro penteado com brilhantina e um jeito concentrado de trabalhar que me fazia suspirar. Meu pai, José Antônio, não gostou muito quando percebeu meu interesse. Dizia que era muito nova para namorar, mas minha mãe Dolores convenceu ele que o Clemente era moço de família e que seria
bom partido. O namoro foi como se usava na época. Sentados na sala com meus pais e meus quatro irmãos, sempre por perto, vigiando cada suspiro. Nos domingos depois da missa, ele podia me acompanhar na praça, sempre de braço dado, nunca de mão. As cartas que ele me mandava, eu guardava debaixo do colchão, enroladas numa fita azul que ganhei no meu aniversário de 15 anos. Quando nós casar, Vera, vou construir uma casinha só nossa, pequena, mas arrumadinha, ele me dizia, e eu ficava imaginando as cortinas que ia costurar, o jardim que ia plantar, os filhos que
íamos ter. O noivado foi curto, só seis meses. Lembro da minha mãe costurando meu vestido branco, simples, mas com os bordados delicados que ela fez noite adentro. As minhas irmãs mais novas experimentavam o véu escondido, sonhando com o dia delas. Eu nem dormia direito, pensando na vida nova que ia começar. Foi uma semana antes do casamento que veio o balde de água fria. Estávamos jantando, eu, meus pais e meus irmãos, quando Clemente apareceu fora de hora, parecia nervoso, rodando o chapéu nas mãos. Seu José, dona Dolores, é que bom. Aconteceu o imprevisto. Ele começou gaguejando.
Papai disse que não faz sentido gastar com aluguel quando tem tanto espaço lá em casa. Então, a gente vai morar com eles depois do casamento. Meu coração afundou até o chão. No fundo, eu já devia imaginar. Quase todos os recém-casados começavam assim, mas eu tinha me agarrado naquela promessa da casinha só. Nossa. Olhei para minha mãe, esperando que ela dissesse algo, mas ela só baixou os olhos para o prato. Meu pai deu de ombros, como quem diz que isso não era problema dele. Só por um tempo, Vera. O Clemente disse mais tarde, quando ficamos um
minuto sozinhos na varanda. Logo junto um dinheiro e construo nossa casa. Nem preciso dizer que acreditei. Quando a gente tem 17 anos e está apaixonada, acredita em qualquer coisa. O casamento foi na igrejinha da cidade, com direito arroz na saída e festa no salão paroquial. Foi bonito, todo mundo disse. Eu estava tão nervosa que quase não lembro. Só ficou na memória o cheiro forte de flores, o peso da aliança no dedo e minha mãe chorando quando me abraçou. Depois da festa partimos para nossa lua de mel. Seu Geraldo tinha um cunhado com uma casinha na
serra. perto de uma cachoeira e nos emprestou por três dias. Santo Deus, que dias foram aqueles? Pela primeira vez estávamos realmente sozinhos, sem ninguém vigiando, sem horários para cumprir. Nossa primeira noite juntos foi de descoberta e, claro, de muita vergonha, criada como fui, sabendo quase nada sobre o que acontece entre um homem e uma mulher. O pouco que sabia era o que eu via das amigas na escola. Eu tremia como folha ao vento quando Clemente me tocou pela primeira vez, mas ele foi gentil, paciente, e aos poucos meu corpo foi aprendendo a linguagem do dele.
O cheiro de madeira da cabana, o som da água correndo lá fora e o calor daquele abraço que parecia não ter fim. Essas coisas ficaram gravadas em mim para sempre. Passamos aqueles dias como se o mundo tivesse parado só para nós. Tomávamos banho na cachoeira quando ninguém estava por perto. Ele me carregando nos braços até as pedras mais fundas. Comíamos frutas colhidas na hora, sentados na varanda, observando os passarinhos. À noite, com a luz do lampião iluminando seu rosto, Clemente me contava planos, sonhos. Falava da casa que um dia teríamos, só nossa. E eu acreditava
em cada palavra, enlouquecida de paixão como estava. Foi difícil voltar à realidade depois daqueles três dias de paraíso. Chegamos à casa dos pais dele no fim da tarde de um domingo. A casa era grande, dessas antigas, de corredor comprido e muitos quartos. Logo na entrada, um pé de jasmim perfumava o ar. Era uma casa respeitável, como diziam dona Cândida, minha sogra, me recebeu com um sorriso que não chegava aos olhos. tinha 49 anos, cabelos grisalhos, sempre presos num coque apertado e uma postura tão reta que parecia ter engolido um cabo de vassoura. O seu Geraldo
era mais velho, 62 anos, barrigudo e de riso fácil, daqueles que gostam de contar causos depois do almoço. Seja bem-vinda à nossa casa disse dona Cândida, enfatizando nossa, de um jeito que não me escapou. O quarto de vocês é o último do corredor, arrumei hoje cedo. Carminha, irmã do Clemente. Uma moça de 18 anos, igualzinha a minha em idade, mas com cara de quem já nasceu adulta. apenas me olhou de cima a baixo e murmurou um boa noite sem entusiasmo. Senti na hora que ali estava uma aliada da mãe. Naquela primeira noite na casa dos
sogros, deitada na cama de casal, com lençóis engomados que arranhavam minha pele, senti todo o contraste com a liberdade dos dias anteriores, o tic-tacó antigo na sala, o açoalho que rangia em certos pontos e vozes abafadas vindas de outros cômodos. Fiz o que tinha que fazer, mas não foi a mesma coisa. mal podia suspirar, com vergonha que alguém nos escutasse. Clemente dormiu logo, cansado da viagem e talvez aliviado por ter voltado ao ninho conhecido. Eu fiquei acordada por horas, comparando aquelas paredes estranhas com a casinha da serra, com um nó na garganta e uma certeza
crescendo dentro de mim. Esta não era minha casa. Na manhã seguinte, acordei com cheiro forte de café passado na hora. Era diferente do café da minha mãe, mais amargo, quase queimado. Seria o primeiro de muitos estranhamentos. Me vesti depressa, ansiosa para não começar com o pé esquerdo. Quando cheguei na cozinha, dona Cândida já estava de avental, comandando as panelas como um general. Bom dia, minha filha", ela disse com aquela mesma formalidade fria. "Na nossa casa, o café é se em ponto. O clement precisa estar no serviço às 7 e gosta de sair bem alimentado. Era
o primeiro de muitos na nossa casa que eu ouviria nos tempos seguintes, cada um deles como um pequeno lembrete de que eu era a estrangeira, a intrusa, a que precisava se adaptar." Engoli o café amargo e forcei um sorriso. Os dias seguintes foram um teste de paciência e força que eu, menina de 17 anos, mal sabia que tinha dentro de mim. A casa da dona Cândida era como um relógio suíço. Tudo funcionava num ritmo certo, mas era o ritmo dela, não o meu. Logo aprendi que as roupas brancas tinham que ser fervidas na segunda, as
coloridas lavadas na terça, o chão encerado na quarta. Os armários limpos na quinta, a feira feita na sexta e o bolo para o domingo assado no sábado. Qualquer mudança nessa ordem era vista como uma afronta às tradições da família. Menina, aqui a gente passa as camisas do avesso primeiro. Sua mãe não te ensinou isso, dona Cândida dizia enquanto arrancava a roupa das minhas mãos para mostrar o jeito certo, o jeito dela, claro. Às vezes eu olhava para o Clemente, esperando que ele dissesse algo que me defendesse, mas ele sempre baixava os olhos, fingia não ter
ouvido ou simplesmente saía para o trabalho. No começo, isso me machucava. Depois entendi que ele tinha crescido assim, ouvindo as ordens da mãe sem contestar. Era mais fácil para ele ignorar o que acontecia entre nós duas do que enfrentar aquela mulher que comandava tudo desde que ele se entendia por gente. Carminha não ajudava em nada. Parecia ter prazer em me ver errando, em contar para a mãe quando eu fazia algo diferente do costume da casa. Mamãe, a Vera está pendurando as toalhas do lado contrário. Ou Vera colocou açúcar demais no café do papai. Como duas
galinhas no mesmo terreiro, vivíamos nos bicando por espaço e atenção. As noites eram os momentos mais difíceis. Durante o dia, o trabalho da casa me mantinha ocupada, mesmo sob a vigilância constante da sogra. Mas quando o sol se punha e todos se recolhiam, eu deitava naquela cama estranha e as lágrimas vinham sem permissão. Chorava baixinho, com o rosto virado para a parede, para que o Clemente não visse. Ele sempre dormia rápido. Depois que a gente fazia, enquanto eu ficava acordada, pensando na minha casa, no colo da minha mãe, na liberdade que eu tinha e nem
sabia valorizar. Escrevi muitas cartas para minha mãe nesse tempo. Cartas que nunca enviei. Colocava no papel tudo que não podia dizer em voz alta, todas as pequenas humilhações, a solidão, o medo de nunca me adaptar. Depois rasgava em pedaços miúdos e jogava fora. Tinha vergonha que alguém descobrisse que o casamento não estava sendo o conto de fadas que eu imaginava. No fim da primeira semana, resolvi fazer algo especial para o jantar. Minha mãe tinha me ensinado a fazer uma galinha caipira com quiabo e angu, que era de comer rezando. Pensei que seria uma forma de
mostrar meu valor, de conquistar um espacinho de respeito naquela casa. Passei o dia inteiro preparando tudo com carinho, enquanto dona Cândida estava na casa da comadre dela. Quando ela voltou e sentiu o cheiro da cozinha, foi como se um furacão tivesse entrado pela porta. Quem te deu permissão para mexer nas minhas galinhas? E esse desperdício de quiabo na minha casa a gente guarda pro almoço de domingo. Eu só queria fazer algo diferente, dona Cândida, tentei explicar, mas minha voz foi ficando pequena diante daquela mulher que crescia de raiva na minha frente. Diferente. Há 30 anos
que eu cozinho para essa família e agora vem uma menina que mal saiu das fraldas me ensinar a fazer comida. Foi nessa hora que seu Geraldo, que sempre se mantinha distante das nossas rusgas, surpreendeu a todos. Pelo amor de Deus, mulher, deixa a menina cozinhar. Esse cheiro está me dando água na boca. Dona Cândida olhou para o marido como se ele tivesse crescido uma segunda cabeça. Por um momento, pensei que ela fosse explodir, mas então, num gesto que me deixou mais assustada que aliviada, ela simplesmente tirou o avental, jogou sobre a mesa e disse: "Ótimo.
Vamos ver se vocês vão gostar da comida dela mais do que da minha. Hoje eu não cozinho" e saiu da cozinha com a dignidade de uma rainha destronada. O jantar foi silencioso e tenso. Clemente comia sem levantar os olhos do prato. Carminha apenas cutucava a comida com um garfo. Seu Geraldo, coitado, tentava amenizar o clima, elogiando cada garfada. Está uma delícia, minha nora. Fazia tempo que não comia uma galinha tão macia, mas o silêncio de dona Cândida, sentada na ponta da mesa, sem tocar na comida, pesava mais que qualquer palavra. Naquela noite, enquanto eu lavava
a louça sozinha, entendi uma coisa importante. Aquela casa tinha regras que vinham diante de mim e cada mudança seria uma batalha. A questão era quais batalhas valiam a pena. Quando terminei a cozinha, encontrei Clemente na varanda fumando um cigarro. Era raro ver ele fumar. Só fazia isso quando estava nervoso. "Desculpa pelo jantar", eu disse, sem saber ao certo porque estava me desculpando. Ele ficou em silêncio por um tempo, depois apagou o cigarro e pegou minha mão, algo que raramente fazia na casa dos pais. "A comida estava boa, Vera, muito boa. Mas você precisa entender como
as coisas funcionam aqui." "E como funcionam?", perguntei, tentando não deixar a mágoa aparecer na voz. Mamãe está acostumada a fazer tudo do jeito dela. Ela criou essa casa, criou a gente. Não é fácil para ela dividir o espaço agora. E não é fácil para mim me sentir uma estranha todos os dias, respondi surpresa com minha própria ousadia. Ele apertou minha mão mais forte e olhou para o céu estrelado. Vai melhorar, Vera. Dá tempo ao tempo. Um dia vamos ter nossa casa do nosso jeito. Prometo. Eu queria acreditar. Deus sabe como eu queria. Mas algo dentro
de mim dizia que aquela promessa era como um horizonte. Sempre parecia estar ali ao alcance. Mas quando você caminhava em sua direção, ele se afastava na mesma proporção. Na manhã seguinte, acordei mais cedo que todos. Preparei o café como dona Cândida gostava, coado na hora bem forte. Coloquei a mesa com o pão que tinha sobrado do dia anterior, cortado em fatias finas, como ela fazia. Quando ela entrou na cozinha e viu tudo pronto, parou por um momento, me olhando como se estivesse avaliando um tecido para comprar. Bom dia, dona Cândida. Falei, tentando soar natural. Fiz
café. Ela examinou a mesa, pegou uma xícara, provou o café, depois, sem um sorriso, mas também sem a hostilidade do dia anterior, disse apenas: "O café está bom, mas da próxima vez coloca menos pó. Assim, gasta menos e rende mais." Não era um elogio, nem uma aceitação completa, mas era um começo. E naquele momento eu soube que sobreviveria ali. Não seria fácil, não seria bonito, mas eu encontraria um jeito. Depois de quase um mês morando na casa dos meus sogros, minha família finalmente veio me visitar. Era domingo, dia em que dona Cândida permitia visitas após
a missa. Lembro de ver minha mãe e meu pai chegando pelo caminho do jardim. seguidos pelos meus irmãos mais novos, meu coração quase saiu pela boca de tanta saudade. "Trouxemos bolo de fubá", disse minha mãe, entregando um embrulho ainda quente para dona Cândida. "É a receita da minha mãe, que Deus a tenha." Dona Cândida recebeu o presente com aquele mesmo sorriso contido que ela usava para tudo. Muito gentil, dona Dolores. Aqui a gente faz com erva doce, mas vamos experimentar do seu jeito. Meu pai, homem de poucas palavras, apertou a mão de seu Geraldo e
logo os dois estavam sentados na varanda conversando sobre o tempo e as plantações. Meus irmãos ficaram acanhados no começo, como se não soubessem bem onde se encaixar naquela casa formal. Carminha, surpreendentemente, foi gentil com eles. Talvez porque fossem mais novos, talvez porque não representassem ameaça ao seu território. Não sei. Fiquei observando enquanto ela mostrava o quintal para minha irmã caçula. O mais difícil foi quando minha mãe me puxou para um canto e perguntou baixinho: "Está tudo bem, minha filha? Você está feliz? Queria tanto poder dizer a verdade e contar das noites chorando, das críticas constantes,
da solidão, mas olhei para ela e não tive coragem. Que direito eu tinha de jogar minhas tristezas nas costas dela, que já carregava tantas. Estou me adaptando, mãe. O clemente é bom para mim. Não era mentira. Ele era bom do jeito dele. Só não era forte o suficiente para me proteger da mãe dele. Mas isso eu não falaria. Se precisar de qualquer coisa, minha filha, é só mandar recado. A casa da sua mãe sempre vai estar de portas abertas. Aquelas palavras, saber que tinha para onde voltar, se tudo desse errado, me deu mais força do
que ela poderia imaginar. O resto da visita passou rápido demais. Sei que minha mãe percebeu coisas que não falei, mas têm esse dom. Vi nos olhos dela quando se despediu. Estava preocupada, mas também viu orgulho, porque naquele tempo mulher casada tinha que aguentar o que viesse. Era assim, separação era palavrão que não se pronunciava em família decente. Quando eles se foram, fiquei na porta, olhando até o último aceno sumir na curva do caminho. Senti uma presença atrás de mim e me virei, esperando ver clemente. Era dona Cândida. Sua mãe parece ser boa pessoa", ela disse
num tom que eu ainda não tinha ouvido dela. "Ela é", respondi simplesmente. O bolo estava bom, diferente, mas bom. Foi quase um milagre ouvir aquilo por um instante, por um único e breve instante. Senti que talvez pudesse existir um entendimento entre nós duas algum dia. Foi pouco depois do quarto mês de casada que comecei a desconfiar. Minha menstruação, que sempre vinha certinha como o pagamento do armazém do seu Geraldo, não apareceu. Primeiro achei que era o nervoso da adaptação, as noites mal dormidas, a saudade de casa. Mas quando completou seis semanas de atraso e os
enjoos começaram a me acordar toda a manhã, não havia mais como fugir da verdade. Eu estava esperando um filho. Naquele tempo, estar de barriga era ao mesmo tempo uma bênção e um fardo. Bênção porque filho era o que se esperava de toda mulher casada. Era quase uma obrigação, uma prova de que o casamento estava dando certo. Fardo, porque a gente virava uma espécie de território público, onde todo mundo achava que podia dar palpite, tocar, opinar. Contei primeiro para o Clemente numa noite em que ele chegou mais cedo da carpintaria. Ele ficou parado, me olhando por
um tempo que pareceu uma eternidade. Depois abriu um sorriso tão grande que iluminou o quarto inteiro. Tem certeza, Vera? Tenho. Esse é o segundo mês que não vem e tenho os enjoos. Ele se ajoelhou na minha frente e apoiou a cabeça na minha barriga, ainda lisa como sempre tinha sido. Senti suas lágrimas molhando meu vestido e nessa hora, por um momento breve, pensei que talvez tudo fosse ficar bem, que aquele bebê viria para unir a gente de um jeito que nem a dona Cândida poderia separar. "Vou ser pai", ele sussurrou, "ma para si mesmo que
para mim. Vou ser pai. Concordamos em contar para os pais dele no jantar. Clemente achava que eu devia dar a notícia, que era meu direito, mas eu estava nervosa demais. Pedi que ele falasse. Foi um dos raros momentos em que vi Clemente enfrentar a mãe de frente, os olhos brilhando de uma felicidade que nem ela poderia diminuir. Mamãe, papai, a Vera está esperando um filho. Vamos ter um bebê. Seu Geraldo veio me abraçar, os olhos marejados como os do filho. Carminha soltou um gritinho de excitação. A perspectiva de ser tia parecia ter suavizado um pouco
comigo, mas foi a reação de dona Cândida, que ficou marcada na minha memória. Ela não sorriu, não me abraçou, apenas se endireitou na cadeira, ajustou o guardanapo no colo e disse com aquela voz que não admitia contestação. Já estava na hora. Agora vamos ter que cuidar direito dessa gravidez. Essas moças de hoje não sabem o que é carregar um filho como se deve. E assim começou o cerco. De uma hora para outra, virei uma espécie de vaso precioso, mas um vaso que não podia escolher onde ficava, nem que flores carregava. Dona Cândida, assumiu o comando
da minha gravidez, como se o bebê fosse dela. Não, meu. Não pode comer isso. Faz mal para o neném. Não pode levantar peso. Vai perder a criança. Não pode sair no sereno, pega resfriado. Não pode dormir de bruços, machuca o bebê. Não pode tomar café, a criança nasce nervosa. Era uma lista interminável de não pode que me deixava zonza. Eu tinha crescido vendo minha mãe e minhas tias grávidas trabalhando na roça até o dia do parto, sem todas essas frescuras. Mas na casa da dona Cândida, gravidez era quase uma doença que precisava de curandeiro 24
horas por dia. O pior eram os chás. Todo santo dia ela parecia com uma infusão diferente, fedendo a ervas que eu nunca tinha visto na vida. Toma tudo, menina. Esse é para formar os ossinhos do bebê. Esse aqui é para não ter estrias. Esse é pro parto ser ligeiro. Eu bebia tudo com medo de ofender e também porque no fundo queria acreditar que ela só queria o melhor pro netinho. Mas alguns daqueles chás me davam ânsia tão forte que eu corria pro quintal e vomitava escondida atrás do pé de goiaba. Com três meses, minha barriga
já começava a aparecer. Um montinho redondo que eu acariciava. O bebê era meu segredo, meu tesouro, a única coisa realmente minha naquela casa. À noite, quando todos dormiam, eu conversava com ele em pensamento, contava histórias, fazia promessas de dias melhores. Foi nessa época que comecei a ouvir as conversas entre dona Cândida e as comadres dela. Falavam de mim como se eu não estivesse ali ou como se fosse incapaz de entender o que diziam. Se Deus quiser, vai ser menino. O clemento homem para seguir os passos dele. A moça é muito novinha, será que vai saber
criar direito? Tomara que puxe o pai. Na nossa família, os homens são fortes, não adoecem à toa. Cada palavra era como uma agulhada no meu coração. Eu queria gritar que aquele filho era meu, que eu já amava fosse menino ou menina, que seria uma boa mãe mesmo sendo jovem. Mas engoli as palavras junto com os chás amargos e rezava para ter forças para aguentar aquele tempo. Nos dias de mais desespero, escrevia para minha mãe. Dessa vez mandei algumas das cartas. Precisava de alguém que entendesse o que eu estava passando. Minha mãe respondeu como só ela
sabia fazer, com poucas palavras, mas cheias de sabedoria. Filha, quando estiver se sentindo sozinha, lembre que o bebê está sempre com você. É uma companhia que ninguém pode tirar. E sobre os conselhos da sua sogra, tudo com respeito, agradeça e depois faça o que seu coração de mãe mandar. Deus dá instinto para as mães, não para as sogras. Quando completei 5 meses, aconteceu algo que mudou a dinâmica da casa. Seu Antônio, o barbeiro, que também era uma espécie de curandeiro local, passou mal durante um corte de cabelo. As pessoas diziam que foi um derrame dessas
doenças que deixam a pessoa torta de um lado só. Como não tínhamos médico na cidade pequena e o hospital mais próximo ficava a horas de distância, a notícia correu rápido. Precisavam de ajuda para cuidar do velho barbeiro. Dona Cândida, com toda sua experiência em chás e rezas, foi chamada para ajudar. De repente, ela passou a sair todos os dias depois do almoço e só voltava perto da hora do jantar. Aquelas horas sem ela na casa, eram como um feriado para mim. Eu podia respirar, ser eu mesma, cuidar da minha gravidez do meu jeito. Foi nessas
horas de liberdade que me aproximei da Carminha. Sem a mãe por perto. Ela era quase uma outra pessoa, menos amarga, mais disposta a conversar. Um dia, enquanto eu dobrava lençóis no varal, ela veio me ajudar, algo que nunca tinha acontecido antes. Já pensou no nome? Ela perguntou. e pela primeira vez parecia genuinamente interessada. "Se for menina, queria Catarina. Acho lindo esse nome. Se for menino, talvez Olavo como do seu avô e do Clemente Olavo é bonito." Ela concordou. "Mas mamãe vai querer que seja Clemente. Filho", ela comentou esses dias com a comadre. Pensei comigo. Era
só o que me faltava, até o nome ela escolher. Ficamos em silêncio por um tempo, cada uma perdida nos próprios pensamentos. Então ela disse algo que me pegou de surpresa. Deve ser bom, né, ter um bebê crescendo dentro da gente, como se nunca estivesse sozinha. Olhei para ela e vi algo que nunca tinha notado antes. Solidão. Carminha era quase um ano mais velha que eu, mas sem pretendente à vista, sem amigas próximas, pelo que eu podia ver, sem muito além daquela casa e da sombra forte da mãe. Naquele momento, senti uma pontada de compaixão por
ela. "Quer sentir?", ofereci, levando sua mão à minha barriga. Às vezes ele chuta bem de levinho ainda. Os olhos dela se arregalaram quando sentiu um movimento suave sob a pele esticada. Foi a primeira vez que a vi sorrir de verdade para mim. Bonita minha cunhada, viu? Os dentes grandes como os do irmão. Ele sabe que sou eu, a tia dele. Claro que sabe. Menti. Porque aquele momento de conexão era precioso demais para ser quebrado com a verdade. Dali em diante, quando dona Cândida não estava, Carminha vinha conversar comigo, perguntar sobre o bebê, até me ajudar
com as tarefas mais pesadas que eu começava a ter dificuldade de fazer sozinha. Foi um alívio inesperado ter uma aliada naquela casa, mesmo que a aliança fosse frágil e existisse apenas nos momentos de ausência da matriarca, foi no começo de janeiro que as dores começaram. Umas fisgadas que iam e vinham. Eu estava varrendo o quintal quando senti um aperto forte que me fez largar a vassoura no chão. Carminha foi a primeira a me ver dobrada com a mão na barriga. "Vera, é o menino?", ela perguntou com os olhos arregalados. Nem tive tempo de responder direito.
Logo a casa virou uma correria. Todos estavam em casa naquela tarde de sábado. Dona Cândida tomou as rédias como se tivesse esperando esse momento a vida toda. Esquenta água. Mandou pra Carminha. Geraldo, vai chamar a comadre Juraci para ajudar, ordenou pro marido. E pro Clemente, coitado, só disse você fica na sala e reza. O pobrezinho branco feito cera de igreja nem reclamou. Eles me levaram pro nosso quarto e lá foi o começo da peleja. Fiquei o dia inteiro naquela cama sentindo dores que iam e voltavam. A comadre Jurac chegou. Era parteira, uma senhora mais velha
que a dona Cândida, com mãos calejadas de tanto trazer criança ao mundo. "É o primeiro, demora mesmo?", Ela falou enquanto dona Cândida ajeitava os panos embaixo de mim. Foi a primeira vez que vi minha sogra suar. Ela tirou aquele coque apertado, amarrou um lenço na cabeça e arregaçou as mangas. Naquela hora não era mais a dona da casa me vigiando. Era uma mulher ajudando outra mulher. Quando o sol já ia se pondo. Aí sim a minha bolsa estourou. A dor virou uma coisa só, sem parar. Eu gritava tanto que mordia o pano que puseram na
minha boca. A minha cunhada estava ao meu lado. Parecia que não teve coragem de ver por onde saiu o bebê. A cara dela acho que estava pior que a minha. Foi quando a comadre Juraci gritou. Tá coroando? Força, menina. Força. E eu fiz força. Mais força do que achava que tinha dentro de mim. E de repente um chorinho fino encheu o quarto. É um menino. Dona Cândida anunciou com a voz embargada, segurando nos braços uma coisinha vermelha e enrugada que esperneava. Nunca vou esquecer a imagem dela ali, com lágrimas escorrendo pelo rosto severo, olhando pro
primeiro neto. Por um momento, nós duas éramos só duas mulheres maravilhadas com aquela vida nova. Clemente entrou correndo quando ouviu o choro. Parecia um menino grande, sem saber onde pôr as mãos, os olhos brilhando de emoção. Dona Cândida lavou o bebê, enrolou num paninho branco que ela mesma tinha bordado e colocou ele nos meus braços, tão pequenino e tão perfeito, os dedinhos fininhos, as unhas eram grandes e um cabelinho preto molhado igual ao do pai. Olhei pra criaturinha no meu colo e senti uma coisa estranha no peito, um amor que nem sabia que existia. "Como
vai chamar o Clementinho?", dona Cândida perguntou enquanto ajeitava os panos da cama. Ergui os olhos para ela, surpresa. Na minha cabeça já tinha o nome certo. O lavo, como tínhamos combinado eu e meu marido no silêncio do nosso quarto. Olavo respondi baixinho, olhando pro meu menino. Olavo, eu gosto muito desse nome. O sorriso no rosto dela murchou como flor em tempo de seca. Clemente filho seria mais bonito ela disse com firmeza. É tradição dar o nome do pai pro primeiro filho homem. Nesse momento, olhei pro Clemente esperando apoio. Ele ficou ali dividido entre a mãe
e a mulher, sem saber para que lado ir. Depois de um silêncio comprido, ele falou: "Mãe, a gente já tinha escolhido. Vai ser Olavo mesmo". O queixo de dona Cândida tremeu, mas ela não disse mais nada. Saiu do quarto com passos duros, deixando um frio no ar. A parteira Jurac fingiu que não viu nada, ocupada em arrumar os panos sujos, Clemente, depois de admirar o filho mais um pouco, disse que ia dar a notícia para minha família. Vou até a casa dos seus pais, Vera. Eles precisam saber que são a voz. Fiquei com o coração
quentinho de saber que mesmo cansado, ele ia fazer essa caminhada só para avisar minha gente. Olavo dormia no meu peito, sem saber da confusão que seu nomezinho tinha causado. No dia seguinte, ouvi vozes animadas chegando. Era minha mãe, meu pai e meus irmãos, todos juntos vindo conhecer o novo membro da família. Minha mãe entrou no quarto com os olhos já cheios d'água. "Minha filha, virei avó", ela falou, me abraçando com cuidado para não machucar o pequeno. "Deixa eu ver essa bênção de Deus". Quando coloquei o lavo nos braços dela, vi as mesmas mãos que me
criaram agora, segurando meu filho. "Meu pai", ficou parado na porta, enxugando uma lágrima escondida com a manga da camisa. Depois pegou o neto. A gente falava com ele, mas ele mal respondia. Acho que o choro estava para sair e ele estava envergonhado. Meus irmãos se acotovelavam para ver o sobrinho. É a cara do clemente, disse minha mãe, examinando o rostinho do bebê. Mas tem o nariz da nossa família", acrescentou meu pai, orgulhoso. Dona Cândida apareceu na porta meio sem jeito. Minha mãe, que sempre foi mais diplomática que eu, levantou e foi abraçar ela. "Comadre, agora
somos a voz da mesma criança", disse minha mãe naquele jeito manso dela. "Que Deus abençoe nosso netinho." Vi um sorriso pequeno no rosto de dona Cândida, que logo voltou à sua postura de sempre. Ela ofereceu café para todo mundo, levando a visita paraa sala. Mais tarde, quando ficamos só nós duas no quarto, minha mãe se aproximou e falou baixinho: "Como tá sendo, minha filha? Tão tratando você bem? Queria tanto abrir o coração, contar das dificuldades, dos chás que me faziam mal, das críticas constantes. Mas olhei pro meu bebê dormindo e só respondi: "Tô aguentando, mãe,
cada dia um dia". Ela entendeu o que não falei. Pegou minhas mãos entre as dela. Quando o resguardo acabar, traga o menino para passear lá em casa, porque você não vai muito lá. Eu tenho muita falta, sua filha. Baixei os olhos sem saber como contar, mas minha mãe merecia saber. Dona Cândida vive dizendo que lugar de mulher casada é na casa do marido, mãe, que agora minha família é a do Clemente, ela torce o nariz quando falo de ir visitar vocês. Minha mãe apertou os lábios, segurando o que queria dizer. Isso é coisa de antigamente,
Vera. Família é família. Quando a gente casa, as duas famílias se tornam uma só. Vou conversar com seu pai. Qualquer domingo a gente vem buscar vocês três para almoçar lá em casa. Aquilo me deu um quentinho no coração. Mesmo não podendo resolver tudo, saber que minha mãe entendia o que eu estava passando já era um consolo. Depois que minha família foi embora, as coisas voltaram ao normal. Foram dias difíceis depois do parto. Dona Cândida falava comigo só o necessário. Sempre chamando o menino de o nenê. Nunca pelo nome. Quando eu amamentava, ela vinha verificar se
eu tava fazendo direito, sempre com alguma correção na ponta da língua. Na minha época, a gente deixava o bebê mamar até dormir, não tirava ele assim. Eu mordi a língua para não responder. O nenê era meu, mas a casa era dela. E para piorar, no fim daquele mês, Clemente chegou em casa mais cedo, com cara de enterro. O que foi, homem?, Perguntei com o coração apertado. Mandaram embora seis da carpintaria. Eu fui um deles ele disse sem olhar nos meus olhos. Disseram que não tem encomenda suficiente para manter todo mundo. Senti um peso no estômago,
sem trabalho, como ia ser. Como íamos sair daquela casa algum dia? Clemente sentou na beirada da cama com a cabeça baixa. "Vou procurar serviço amanhã mesmo, mesmo com o coração pesado." Tentei animar ele. Vai dar certo. Você é bom no que faz. Logo aparece outro trabalho. Mas por dentro sabia que ia ser difícil. Homem sem serviço naquela época era como planta sem água. Ia murchando de vergonha dia após dia. E o acerto? Você trabalhou tanto tempo lá? Devem ter te dado alguma coisa. Falei baixinho paraa dona Cândida não ouvir da cozinha. Clemente se aproximou e
coxixou no meu ouvido. Me deram sim um dinheiro bom até. Mas não conta pra mãe. Guardei tudo no banco, longe dos olhos dela. A gente continua juntando. Quem sabe dá para comprar nossa casinha um dia. Eu me animei. Ele estava mudando aos poucos, vendo que não podíamos mais continuar morando ali. Dei um sorriso pequeno, mas logo voltei a ficar séria quando dona Cândida apareceu na porta. Vou procurar serviço amanhã mesmo. Clemente disse em voz alta. Quem sabe na cidade grande tem mais oportunidade. Mesmo com o coração mais leve pelo segredo que compartilhamos, tentei parecer preocupada.
Vai dar certo. Você é bom no que faz. Logo aparece outro trabalho. Quando dona Cândida soube da notícia, fez aquela cara de quem já esperava. Pode ficar aqui o tempo que precisar, meu filho. Casa de mãe sempre tem lugar. E naquele momento senti que tínhamos uma pequena chama de esperança que ela não sabia, um dinheirinho guardado, um sonho nosso de ter nossa própria casa. Eu e Olavo continuamos debaixo das ordens dela, enquanto Clemente saía todo dia em busca de trabalho, voltando cada vez mais murcho. Foi nessa época que Carminha começou a namorar um rapaz da
cidade vizinha, filho do dono da farmácia. De repente, dona Cândida tinha outra coisa para se ocupar. Era: "Carminha, esse vestido não tá bom para receber visita?" "Ou Carminha, vamos fazer um bolo pro Augusto provar. Minha cunhada, que sempre tinha sido sombra da mãe, agora vivia com as bochechas vermelhas, suspirando pelos cantos. Com a atenção da sogra voltada paraa filha, consegui respirar um pouco. Comecei a criar meu próprio ritmo com Olavo. A gente tinha nossos momentos, nossas cantigas, nosso jeito de fazer as coisas e o menino crescia bonito. Já com 5co meses, sentando sozinho, rindo alto
quando o pai chegava. Numa tarde de domingo, quando eu estava no quintal estendendo roupa com Olavo brincando num cestinho, Carminha veio me ajudar. Ela tava diferente, mais mulher, menos menina. Acho que o Augusto vai pedir para casar logo. Ela me contou em segredo. Ele já falou com o pai dele. Que bom, Carminha. Você gosta mesmo dele? Gosto. Ela disse com um sorriso largo. E sabe o que mais eu gosto? Que a farmácia fica longe daqui. Não vou precisar morar com sogra. Rimos juntas, cúmplices daquele sentimento que não podíamos confessar em voz alta. Foi quando vi
Clemente chegando com um passo diferente, mais firme. Fazia tempo que não via ele assim. Ele me abraçou na frente de Carminha, coisa que nunca fazia. Consegui um trabalho, Vera, na marcenaria do seu Joaquim, na cidade vizinha. paga melhor que o outro e tem mais futuro. Meu coração deu um pulo de alegria, mas logo senti aquele medo. É longe daqui, não é? Como você vai fazer? Vou de carona com leite todo dia cedinho e volto no fim da tarde. Vai ser cansativo? Falei preocupada. Vale a pena ele disse abaixando a voz. E se continuar dando certo,
daqui a uns meses podemos alugar uma casinha lá. pertinho do serviço. Senti uma esperança acender dentro de mim, mas não quis alimentar muito. Tantas vezes tínhamos sonhado com nossa casinha para depois ver o sonho se desfazer como fumaça. Mas o trabalho novo do Clemente era de verdade. Logo ele conseguiu se firmar, ganhou a confiança do seu Joaquim e começou a trazer dinheiro para casa. Dona Cândida, ocupada com os preparativos do casamento de Carminha, nem notou quando começamos a guardar umas notas debaixo do colchão. E assim, quase 10 meses depois do nascimento do Olavo, Clemente chegou
em casa com uma notícia que mudou nossa vida. Vamos alugar a casinha amarela perto da praça. Conversei como dono hoje. A gente pode se mudar no fim do mês. Fiquei sem reação entre a alegria e o medo. Era o que eu mais queria, mas de repente me senti insegura. E se não desse certo? E se o clamente perdesse o emprego de novo? Como ia ser sustentar uma casa sozinhos, pagar aluguel, comprar comida? Mas quando vi o rosto dele cheio de orgulho e esperança, não tive coragem de estragar aquele momento. Abracei ele forte, como lavo no
meio de nós dois, babando de alegria, sem entender o motivo. Contar para dona Cândida foi mais difícil do que imaginei. Ela ouviu quieta, sem expressão, como se estivesse esperando aquilo. Casa alugada e dinheiro jogado fora. Foi a primeira coisa que disse. É perto do serviço, mãe. Clemente tentou explicar. E vamos economizar no transporte. Você acha que vai dar conta com criança pequena? Gastos da casa. Pela primeira vez vi Clemente falar firme com a mãe. Vou dar conta. Sim. É minha obrigação cuidar da minha família. Seu Geraldo, que normalmente não se metia nesses assuntos, surpreendeu a
todos. Deixa o rapaz tentar, mulher. Eles precisam do espaço deles e a gente não vai viver para sempre para cuidar deles. Acho que foi a primeira vez que vi dona Cândida sem resposta. Ela só apertou os lábios e saiu da sala. A mudança foi feita num domingo. Não tínhamos muita coisa, só umas roupas, uns pratos que dona Cândida nos deu, meio a contragosto, a caminha do Olavo que Clemente fez e nossa cama de casal, presente de casamento dos meus pais. tudo que tinha no nosso quarto. A casinha era pequena, só um quarto, sala, cozinha, banheiro
e um quintalzinho. Mas para mim estava ótimo. Pela primeira vez eu podia decidir onde colocar cada coisa, que horas fazer cada tarefa, como criar meu filho. Podia suspirar à vontade quando Clemente me abraçava, podia cantar na cozinha sem ninguém para me criticar. Era como se eu tivesse vivido anos num vestido apertado e de repente pudesse respirar fundo. No primeiro dia a gente estava tão cansado da mudança que viramos pro lado e dormimos feito pedra. Mas no dia seguinte, depois que Olavo pegou no sono, me deu uma coisa na cabeça e comecei a desfilar de camisola
pela casa, me sentindo dona do meu nariz. Não deu outra. Clemente não perdoou. me abraçou ali mesmo na nossa sala, os dois sem fôlego de tanto querer um ao outro depois de tanto tempo com medo dos ouvidos da casa dos outros. Quando acabou, ele ainda falou com aquele sorrisinho de canto: "Se eu soubesse que ia ser assim, tinha alugado essa casa antes. Ri tanto que quase acordei o menino. Era muito fogo guardado. Clemente também mudou. Longe da mãe, ele se tornou mais decidido, mais homem. trabalhava duro, chegava cansado, mas sempre com um sorriso no rosto
quando vi a gente esperando ele na porta. Mas o medo não me abandonava. E se esse emprego também acabasse? E se tivéssemos que voltar paraa casa da dona Cândida, de rabo entre as pernas? A ideia me dava frio na barriga. Foi numa tarde quando eu estava remendando uma camisa do Clemente que tive a ideia. Eu sempre gostei de costurar. Aprendido com minha mãe desde menina. Clemente falei naquela noite. Depois que lavo dormiu. Tava pensando, se você pudesse me dar uma máquina de costura, acho que poderia ajudar nas despesas. Ele me olhou curioso. Como assim? Fazendo
costura pras pessoas. para complementar seu salário pra gente nunca mais ter que voltar para casa da sua mãe. Falei a última parte baixinho, com medo de magoar ele. Mas para minha surpresa, Clemente sorriu e pegou minha mão. Amanhã mesmo vou ver quanto custa uma máquina dessas de segunda mão. No mês seguinte eu já tinha minha máquina. Não era uma singer, mas funcionava bem. Coloquei uma plaquinha na frente de casa, face costuras e consertos. No começo apareceu pouca gente, mas logo as mulheres da vizinhança começaram a trazer vestidos para ajustar, calças para fazer bainha, cortinas para
costurar. De repente, eu não era só a mulher do Clemente ou a mãe do Olavo. Era a Vera costureira. Tinha meu próprio dinheirinho que guardava num potinho de vidro dentro do armário. Era pouco, mas me dava uma segurança que nunca tinha sentido antes. A vida foi tomando um rumo diferente. Eu ia visitar mais minha família e eles iam lá em casa mais vezes também. Olavo já tinha quase do anos quando descobri que estava esperando outro bebê. Dessa vez, sem os chás da dona Cândida, sem as críticas, sem o medo constante de fazer algo errado. "Vai
ser uma menina", eu dizia pro Clemente, "Para completar nossa família". E foi mesmo. Eulia nasceu numa tarde quente de março com a ajuda de uma parteira da cidade. Dessa vez eu sabia o que esperar. Não tinha tanto medo. Clemente ficou do meu lado o tempo todo, segurando minha mão. Nesse tempo de gravidez, eu fui visitar minha sogra umas duas ou três vezes, e outras, o Clemente ia sozinho com a laavo. Ela não ia na nossa casa de jeito nenhum, mas quando nasceu, dona Cândida veio visitar uma semana depois do parto. Achei que ia encontrar a
mesma mulher autoritária de sempre, mas o tempo também tinha mudado ela. Talvez a solidão depois que Carminha se casou e foi embora. Talvez a idade chegando, não sei. Ela entrou na minha casa com jeito de quem pede licença. Posso ver a Netinha? Perguntou quase tímida, enquanto Olavo corria ao encontro da avó. estendia o Lália nos braços dela, observando com cuidado. Dona Cândida olhou paraa Netinha com o mesmo olhar que tinha. Quando viu Olavo pela primeira vez, seus olhos marejaram. "É parecida com você", ela disse, a voz mais macia do que eu jamais tinha ouvido. Tão
bonitinha. Nos meses seguintes, para minha surpresa, dona Cândida começou a aparecer com mais frequência. Às vezes trazia um bolo, outras vezes apenas vinha sentar e ver as crianças brincando. Eu estava com mais paciência com a minha sogra, mas claro, eu sabia que era porque a gente não morava juntas. Quando Eulalha completou três anos, Clemente chegou em casa com um brilho diferente nos olhos. Vera, lembra daquele terreno perto do campo de futebol? Aquele que o seu Jorge estava vendendo? Lembro. respondi sem entender onde ele queria chegar. Passei lá hoje. Ele baixou o preço e com o
que a gente tem guardado, mas o que eu recebi de bônus na marcenaria, ele fez uma pausa sorrindo como menino. Acho que dá para comprar, Vera. Não agora a casa, mas o terreno. Depois a gente constrói devagar. Meu coração disparou. Um terreno nosso, o começo da nossa casa própria, finalmente. Tem certeza, Clemente? Não vai faltar dinheiro pro resto do mês? Já calculei tudo. Se você continuar com as costuras e eu fizer umas horas extras, a gente consegue. Naquela noite, mal dormimos, fazendo planos. No fim de semana, fomos ver o terreno. Era bem grande e plano.
Assinamos os papéis com um sorriso de orelha a orelha. Juntamos cada centavo nos meses seguintes. Economizamos em tudo. Até cortei os cabelos das crianças em casa. Construir a casa foi outra história. Começamos pelo básico. Um cômodo grande que serviria de sala e quarto, mais um banheiro e uma cozinha pequena. Temente trabalhava na obra nos fins de semana, junto com alguns amigos da marcenaria que vinham ajudar em troca de uma refeição e a promessa de ajuda quando precisassem. Eu sempre que podia passava lá para olhar enquanto as paredes subiam, tijolo por tijolo. Às vezes, quando ninguém
estava olhando, passava a mão pela superfície áspera, mal acreditando que aquilo seria nosso lar. Depois de quase dois anos vivendo com aperto, economizando cada moeda, nos mudamos. A casa ainda não estava completa. Faltava o reboco de algumas paredes. Os quartos das crianças seriam construídos depois. O quintal era só terra batida, mas era nossa, sem dono para bater na porta cobrando aluguel. Naquela primeira noite, sentamos todos no chão da sala vazia, comendo um bolo que eu tinha feito para celebrar. Olavo com seus 5 anos, corria de um lado para outro. É grande, mamãe, é muito grande.
Ríamos, porque não era grande coisa nenhuma, mas nos olhos dele de criança, parecia um palácio. E de certa forma, era mesmo. Meu trabalho de costura começou a crescer junto com a casa. Fui pegando os concertos e a confiança dos novos vizinhos. Até que um dia a dona Lucinda, esposa do médico da cidade, bateu à minha porta. Ouvi dizer que você costura muito bem. Vera, ela disse, me examinando dos pés à cabeça. Era uma mulher elegante, dessas que a gente olha e pensa que nunca vai ser igual. Faço o que posso, dona Lucinda, minha filha vai
casar no mês que vem. O vestido dela vem da capital, mas as quatro damas precisam de vestidos. Você acha que daria conta? Engoli seco. Vestidos de dama de honra eram outra categoria. Não eram simplesmente saias e blusas, até o tecido seria sofisticado. Além do mais, a minha máquina não era grande coisa. Mas lembrei da minha mãe de como ela me ensinou a olhar um modelo, a reproduzir, a entender o caimento do tecido. Inclusive, foi ela quem fez o meu vestido de casamento. Dou sim, senhora respondi, fingindo uma segurança que não tinha, como se tivesse feito
muitos vestidos daqueles que ela queria. Na primeira oportunidade corri paraa casa da minha mãe, mostrei as medidas, pedi ajuda. Ela fez um dos vestidos e eu fiz os outros três iguaizinhos. A mãe ficou orgulhosa de mim e eu também. Mas não foi fácil. Eu deixei de pegar outras encomendas. Passei noites em claro cortando, alinhavando, bordando. Quando entreguei os vestidos, dona Lucinda ficou tão satisfeita que me pagou um extra. e mais importante, mostrou para as amigas dela. Logo começaram a surgir outras encomendas. Um vestido para a festa de 15 anos da filha do farmacêutico, roupas para
a mulher do prefeito. Até que veio a encomenda que mudou tudo, o vestido de noiva da filha do dono do banco. Nessa época, Clemente comprou uma máquina nova para mim, dessas com motor, que faziam o trabalho render. Adaptamos um dos cômodos da casa, que seria o quarto da Eulália, para ser meu atelierê. A menina dormia com a gente por enquanto, mas ninguém reclamava. O dinheiro das costuras ajudava a construir os cômodos que faltavam. Foi quando tudo parecia ir bem, que o mundo começou a desabar. Seu Geraldo, meu sogro, que já andava meio quieto, começou a
sentir dormência nas pernas. Dona Cândida, preocupada, levou ele ao médico. O diagnóstico foi diabetes, já bem avançada. Precisa cortar o doce, seu Geraldo? O médico disse: "Sério, e cuidar muito bem desses pés, mas meu sogro, teimoso como sempre foi, não dava muita importância. Quando ninguém estava olhando, comia os doces que escondia. Dona Cândida e Clemente brigavam com ele, mas de nada adiantava. Numa tarde de domingo, enquanto almoçávamos todos juntos na casa deles, seu Geraldo derrubou o copo. A mão simplesmente não obedeceu. No dia seguinte, estava no hospital com um derrame. Foram meses difíceis. Eu me
revesava com dona Cândida e Clemente nos cuidados. As crianças ficavam com minha mãe quando eu precisava passar a noite no hospital. As costuras foram ficando para trás, os prazos apertando. Ele voltou para casa, mas não era mais o mesmo. Uma perna não funcionava direito, um braço tinha perdido a força. E pior, ele, que sempre foi alegre, afundou numa tristeza que partia o coração. "Todando trabalho", ele dizia com aquela voz meio arrastada que ficou depois do derrame. "Que trabalho que nada, pai". Clemente respondia, tentando animar, mas eu via nos olhos do meu sogro uma humilhação que
homem nenhum merece sentir. Ele, que sempre foi o pilar daquela casa, agora precisava de ajuda até para ir ao banheiro. E veio a gangrena. Começou com uma ferida no pé que não cicatrizava. Dona Cândida fazia compressas, passava os remédios das ervas que ela mexia, mas nada adiantava. Quando levamos ao médico de novo, ele balançou a cabeça com aquela cara que a gente sabe que traz notícia ruim. Vamos ter que amputar a perna esquerda, seu Geraldo, senão a infecção espalha. Meu sogro chorou como criança naquele consultório. Foi a única vez que vi aquele homem forte, derramando
lágrimas sem vergonha. Depois da amputação, ele nunca mais foi o mesmo. Gente do céu como esse homem sofreu. Ficava na cadeira da varanda, olhando o movimento da rua, cada dia mais magro. O barrigão alto que ele tinha estava ficando pequeno. Ele estava mais distante. Numa manhã de inverno, dona Cândida foi acordar ele e o encontrou frio. Tinha partido durante a noite, quietinho, sem incomodar ninguém, do jeito que sempre viveu. Depois da amputação, ele viveu 4ro meses apenas. Dona Cândida ficou perdida depois da morte do marido. A casa grande, que antes parecia pequena para tanta vida,
agora ecoava o silêncio. Clemente e Carminha iam todos os dias ver a mãe preocupados. Ela não come, Vera, fica olhando pro nada. Tenho medo. Um dia tomei coragem e fiz a proposta. Dona Cândida, por que a senhora não vem morar com a gente? pode alugar sua casa, ter uma rendinha extra e não ficar sozinha. Esperava resistência, orgulho, mas ela apenas levantou os olhos que pareciam ter perdido o brilho. Não quero dar trabalho, minha filha. Foi a primeira vez que ela me chamou assim, de minha filha, sem aquele tom formal de antigamente. Que trabalho, que nada.
O Olavo e a Eulha vão adorar ter avó por perto. Acabamos fazendo que nunca imaginei. Abrir as portas da nossa casa para dona Cândida. Foi ironia do destino, viu? Nossa casa que construímos tijolo por tijolo, ainda não era grande coisa perto do casarão dela. Tive que sacrificar meu cantinho de costura, aquele que Clemente tinha feito com tanto carinho, com a mesinha sob a janela que pegava a luz da manhã. Lulalha, coitada, ficou sem quarto de novo. Prometi que o pai dela faria um quarto novinho assim que o dinheiro permitisse. A casa grande da dona Cândida,
com aquele pé direito alto e o açoalho que estalava, foi alugada pro gerente novo do banco, um moço da capital todo cheio de si. Nem passava pela nossa cabeça voltar para lá, por mais que fosse maior e mais bonita. Tinha dois motivos pesando como chumbo. O primeiro, você já conhece bem. Aquelas paredes guardavam cada lágrima que engoli em silêncio. O segundo era que cada canto lembrava seu Geraldo. Isso era realmente muito pesado. No começo, achei que seria difícil, que voltaríamos às antigas desavenças. Mas dona Cândida estava diferente, mais suave, mais quieta e tinha uma paciência
infinita com os netos. que nunca demonstrou com o próprio filho. "Vó, conta a história", pedia o Walha toda a noite. E lá e a dona Cândida, contando histórias de antigamente, de quando era menina, histórias que eu nunca tinha ouvido ela contar. Uma noite, depois que as crianças dormiram, ela ficou comigo enquanto eu costurava um vestido. Olhava minhas mãos trabalhando em silêncio. Nunca aprendi a costurar direito. Ela disse de repente, minha mãe tentou me ensinar, mas eu não tinha paciência. E depois quando casei, minha sogra achava que eu não fazia nada do jeito certo. Então desisti.
Aquilo me pegou de surpresa. Nunca tinha imaginado. Dona Cândida, admitindo que não sabia fazer algo. "Nunca é tarde para aprender", respondi, oferecendo um retalho e uma agulha. Ela sorriu, mas recusou. Essas mãos velhas já não tem mais jeito. Fez uma pausa longa antes de continuar. Sabe, Vera, eu só queria que o Clement tivesse uma vida boa. Talvez tenha exagerado no modo de cuidar. Depois que o Geraldinho morreu, fiquei com medo de perder o Clemente também. Geraldinho, ela respirou fundo, como quem vai contar um segredo guardado há muito tempo. O irmão do Clemente eram gêmeos igualzinhos.
Quando tinham 4 anos, pegaram o sarampo forte. O Geraldinho não resistiu, mas o clement sobreviveu por milagre. Ficaram internados lado a lado. O médico disse que foi por muito pouco, questão de horas, talvez. Um se foi e o outro ficou. Sabe, meu marido era geral do filho como o pai dele. E seguindo a tradição da família, demos o nome do avô e do pai para um dos meninos. Acho que por isso que nunca consegui tratar o Clement. tinha sempre esse medo de perder ele também. Fiquei sem palavras. Clemente nunca tinha mencionado um irmão gênio. Ele
não lembra. Ela disse como se lesse meus pensamentos. Era muito pequeno e nós nós nunca falamos disso. Era doloroso demais. Sempre tentei controlar tudo. Depois do que aconteceu, tinha tanto medo de perder o filho que sobrou que acabei sufocando ele. Naquela noite entendi dona Cândida como nunca antes. E até mesmo fiquei emocionada, pois jamais imaginei ela desabafando comigo aquele segredo que ela guardava apenas com seu marido. Não era apenas uma sogra difícil, era uma mãe marcada pela dor de perder um filho, tentando proteger o outro da única maneira que conhecia. E entendi também porque ela
insistia tanto que o lavo se chamasse clemento. Quando nasceu, ela queria manter viva aquela tradição familiar que se quebrou com a morte do Geraldinho. Naquela noite contei para Clemente sobre o irmão que ele não lembrava ter tido. Ele ficou quieto por muito tempo. Depois perguntou com a voz embargada: "Será que é por isso que às vezes eu sonho que estou conversando comigo mesmo?" Na manhã seguinte daquela conversa, entrei no quarto dela levando um café. Era a primeira vez que eu fazia isso por vontade própria, não por obrigação. "A senhora dormiu bem?", perguntei, colocando a xícara
na mesinha. Ela me olhou surpresa, como se não entendesse aquele gesto. "Dormi?" "Sim, obrigada, Vera. Ficamos num silêncio estranho, daqueles que carregam muitas coisas não ditas. Então tomei coragem. A senhora tem alguma foto dele? Do Geraldinho? Os olhos dela marejaram na hora. Pensei que tinha falado besteira, que ela ia se fechar feito ostra, mas para minha surpresa, ela se levantou e foi até a mala que tinha trazido, aquela mesma que permanecia meio escondida embaixo da cama. Tenho só duas", ela disse, remexendo lá no fundo da mala e tirou uma caixa. Quase não tinha fotografia naquela
época. Essa aqui foi tirada quando eles eram nena, bem um mês antes dele, antes de acontecer. e me estendeu um retrato pequeno, meio amarelado. Dois meninos idênticos, com roupinhas de marinheiro, olhando sério para a câmera. Se não fosse pela manchinha de nascença que o clement tinha no pescoço, seria impossível dizer qual era qual. eram tão parecidos que às vezes até eu me confundia. Ela disse com um sorriso triste. O Geraldinho era mais levado, mais risunho. O Clement sempre foi mais quieto, mas na dele. Geraldinho puxou o temperamento alegre do pai e do avô. Devolvi a
foto chorando, como não chorar. Percebendo o cuidado com que ela aguardava, como se fosse o mais precioso tesouro. Ele era tão alegre. Dona Cândida disse tocando a foto com a ponta dos dedos. Acordava cantando. Fiquei quieta, deixando ela seguir no próprio ritmo. Ela tirou da caixa uma camisolinha branca bordada à mão. Ela tinha também uma mecha de cabelo amarrada com uma fita azul. Foi a última roupa que ele usou antes de ficar doente. Ela disse e pude ver que custava para ela falar disso. Guardei sem lavar. Mas já não tem o cheirinho dele. Ela apertou
o tecido contra o rosto e chorou. Não aquele choro contido de quem tem vergonha das lágrimas. Foi um choro aberto de soluços, de dor crua que finalmente encontra a saída depois de décadas presa. Abracei minha sogra pela primeira vez na vida. Senti seus ossos frágeis sob meus braços, o soluço sacudindo aquele corpo que sempre me pareceu tão forte e inabalável. E percebi que ela era apenas uma mulher como eu, carregando uma dor que eu, graças a Deus, só conseguia imaginar. Naquela noite, chamamos Clemente para ver a caixa. Ele olhou cada item com uma expressão estranha,
como se estivesse vendo algo familiar e, ao mesmo tempo, totalmente novo. "Ele se chamava Geraldo?", Ele perguntou, segurando a foto dos dois bebês. Geraldo, como seu avô e seu pai, dona Cândida, respondeu. Mas a gente chamava de Geraldinho para diferenciar. E você seria clemente. Um nome novo na família. Ela sorriu entre lágrimas. Era sim. Vocês atendiam quando eu chamava pelo nome certo, mesmo sendo tão pequenos. Vi o clanente respirar fundo, olhando fixamente para aquele menino idêntico a ele na foto. "Eu lembro", ele disse subitamente. "Não lembro dele exatamente, mas lembro de não estar sozinho. Lembro
de sentir que faltava alguma coisa depois, como se tivessem arrancado um pedaço de mim." Dona Cândida começou a chorar de novo. "Perdão, meu filho,", ela disse entre soluços. A gente achou que era melhor não falar, que você ia esquecer. O médico disse que era melhor assim, mas acho que a gente só piorou as coisas. Clemamente abraçou a mãe com força, como nunca tinha visto ele fazer antes. Ficaram assim juntos, chorando por aquela perda que nunca tinha sido propriamente chorada. Nos dias que se seguiram, percebi uma mudança em Dona Cândida. Era como se um peso tivesse
saído das costas dela. Ela sorria mais, falava mais. Uma manhã entrei na cozinha e o encontrei ensinando eu lá a fazer biscoitos com uma paciência que nunca tinha demonstrado antes. Fiquei parada na porta, observando aquela cena que jamais imaginei que viria. Clemamente também mudou. começou a perguntar mais sobre a infância, sobre o irmão. Era como se estivessem recuperando não só a memória do Geraldinho, mas também uma relação que nunca tiveram chance de desenvolver. Uma noite, já deitados, Clemente me disse: "Sabe o que é estranho, Vera? Eu parei de ter aquele sonho com o menino. É
mesmo? É. Acho que agora que sei quem ele é, que posso lembrar dele acordado, não preciso mais encontrar com ele dormindo. Aquilo fez um sentido profundo que não sei explicar direito. Com o tempo, a foto dos gêmeos ganhou um lugar na nossa sala, junto com as outras fotos de família. O Geraldinho virou parte da nossa história. Não mais um segredo doloroso, mas uma lembrança que, mesmo triste, podia ser honrada abertamente. Vi como a dor guardada por tanto tempo tinha moldado aquela família. Como medo de perder tinha feito dona Cândida se agarrar com tanta força ao
filho que sobrou, ao ponto de quase sufocar ele. E principalmente aprendi que por trás das pessoas difíceis, muitas vezes existem dores que a gente nem imagina. Minha sogra não era apenas uma mulher controladora, era uma mãe que tinha perdido metade do seu coração e fez de tudo para proteger a metade que restou. Agora entendo porque ela queria tanto que meu filho se chamasse Clemente Filho. Quando ele nasceu, não era só por teimosia, mas para manter viva uma tradição que se quebrou com a morte do Geraldinho. Hoje, olhando para trás dos meus 74 anos, vejo como
a vida dá voltas. Aquela menina de 17 anos que sonhava com casamento, nunca imaginaria tudo que viria viver. Com o passar dos anos, nossa família cresceu mais do que imaginávamos. Depois de Olavo e Eulha, Deus nos abençoou com mais uma filha, nossa caçolinha Catarina. Quando descobri que estava grávida pela terceira vez, Clemente e eu combinamos que se fosse menino o chamaríamos de Geraldo, em memória do irmãozinho dele e do meu sogro. Mas Deus quis diferente e veio mais uma menina para alegrar nossa casa. Escolhi o nome Catarina, pois tinha uma menina na minha escola tão
linda e o nome combinava tanto com ela. Olavo se casou com a Luía e tiveram três filhos. Eulália demorou mais para casar, sempre foi mais independente. Quando finalmente se casou com 26 anos, ela e Paulo nos deu mais dois netos. Já minha Catarina foi a que mais me surpreendeu. Teve quatro filhos, sendo o último parto de gêmeas. Helena e Cecília. Quando as meninas nasceram, dona Cândida chorou tanto ao ver as duas bebezinhas iguaizinhas. "Olha, Vera, Deus te deu gemas também", ela disse, segurando as duas nos braços trêmulos. Foi um momento de cura para ela, tenho
certeza. Dona Cândida viveu conosco por quase 30 anos. Depois que superou o luto do marido e abriu o coração sobre o Geraldinho, virou outra pessoa. Os netos adoravam. Conheceu os bisnetos e tinha uma paciência que nunca demonstrou com os próprios filhos. Quando partiu, estava com 86 anos. Clemente e eu vimos nossos filhos crescerem, se estabelecerem e nossa casa se encher de vozes de crianças novamente. Meu atelier de costura virou um negócio de verdade. Cheguei a ter três ajudantes. Fiz tantos vestidos de noiva que perdi a conta. E Clemente prosperou na marcenaria, fazendo móveis que viraram
marca registrada na região. Quando os bisnetos começaram a chegar, tive a alegria que só uma bisavó entende. Hoje já são nove, quando todos se reúnem no Natal ou em aniversários, nossa casa, sim, aquela mesma que construímos tijolo por tijolo, fica pequena, mas o coração se expande. meu parceiro está aqui, mas resmunga, viu? E é assim que termino esta história, não com um ponto final, mas com reticências, porque enquanto houver um de nós para contar as histórias dos que vieram antes, ninguém realmente parte. E espero que quando chegar minha hora, Deus me receba de braços abertos,
pois eu vivo apenas para agradar a ele. Minha filha, não esquece de conferir o livrinho sem chás das avós para diversos males que o pessoal do canal preparou com tanto carinho para vocês. São receitas maravilhosas para você e toda a sua família. Tem chá para dor de barriga, para gripe, para acalmar, para dormir melhor. Tudo natural, do jeito que nossos antepassados faziam. O pessoal trabalhou muito para reunir todas essas receitas, fazer as ilustrações das ervas e explicar direitinho os benefícios, o modo de preparo, como se a própria vovó estivesse lendo para você. Quando você compra,
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