A linguagem como instrumento de dominação | Rodrigo Gurgel

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Rodrigo Gurgel
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Bom, a linguagem sempre foi vista como um instrumento, um meio pelo qual o homem expressa pensamentos, transmite conhecimento e também molda o mundo ao nosso redor. Agora, e se a linguagem não fosse apenas essa ferramenta? E se a linguagem pudesse se transformar também num agente, ioso, numa espécie de vírus que se propaga, altera as consciências e até mesmo reprograma a realidade?
E se, em vez de simplesmente comunicar, a linguagem imunizasse você contra as dúvidas, criasse falsas certezas, impedisse inclusive o desenvolvimento do seu pensamento, da sua consciência, e transformasse as pessoas em replicadores automáticos de palavras e de conceitos que essas pessoas, na verdade, nunca compreenderam e não compreendem? Bom, o Carl Kraus, já no início do século XX, na Áustria, enxergou essa ameaça. Ele não via a imprensa como um veículo de informação, mas como uma máquina de distorção.
Ele dizia, por exemplo, com grande ironia, que os jornais têm praticamente a mesma relação com a vida que as cartomantes têm com a metafísica. Então vejam que não se tratava de um exagero retórico dele. Não, na verdade, o Kraus sabia que a mídia não descrevia fatos, mas fabricava fatos.
Ele sabia que a linguagem usada pela imprensa não era um reflexo da realidade, mas era um feitiço; era uma construção que substituía os fatos por narrativas convenientes. Em Viena, durante os anos que precederam a Primeira Guerra Mundial, bom, o Kraus testemunhou como os jornais inflamavam o nacionalismo austríaco com manchetes sensacionalistas, né, e transformavam assim a complexidade política daquela época em slogans bélicos que acabaram arrastando milhões para o matadouro da Guerra Mundial. Não estava lidando com teorias, meus caros, nada disso.
Ele viu o sangue escorrer das palavras. O que o Kraus denunciava no jornalismo impresso da sua época, infelizmente, evoluiu para um patógeno global. O jornal que antes se colocava como um intermediário entre a informação e o público, bom, ele se dissolveu completamente.
Agora, não é que todos são jornalistas, como muitos dizem de forma ingênua, né, mas é que a maioria foi cooptada como vetor de uma infecção semântica. Nós não estamos vivendo uma liberdade de expressão expandida, como muitos pensam, mas na maioria dos casos estamos vivendo uma servidão coletiva a palavras que são injetadas em nós. Cada texto jornalístico, cada artigo na mídia, cada post ou vídeo numa rede social, cada tese supostamente científica, carrega uma grande dose desse vírus.
São conceitos que nós não criamos, mas que a gente repete sem refletir e disseminamos como se fossem ideias nossas. O escritor William Burroughs, décadas depois de Kraus, captou essa mutação e nos deu um novo diagnóstico. Ele disse que a linguagem é um vírus.
Em vários dos seus textos, ele insistiu na ideia de que a linguagem opera como um organismo vivo, como uma entidade que invade os cérebros, se replica sem controle e altera a percepção das pessoas infectadas. O Burroughs não estava brincando com metáforas. Não, mas ele via a linguagem como uma força real e letal.
Para ele, as palavras eram armas de um ataque silencioso disparadas por sistemas de poder que não precisavam de um rosto. "A linguagem é um vírus do espaço sideral", ele escreveu, e a sua visão se tornou tristemente profética. Se você prestar atenção, vai perceber que nós vivemos imersos em pandemias mentais.
As palavras, muitas delas, surgem do nada e em poucos dias passam a ser repetidas de maneira obsessiva. E quem contesta essas palavras é imediatamente atacado, e quem hesita acaba isolado, e quem questiona a origem do termo, da palavra, acaba condenado ao ostracismo. E então a infecção se completa: o contágio linguístico se torna um comportamento, e o comportamento se torna política de massa.
Essa é a verdade. Mas vamos pensar em exemplos, tá? Pensem na palavra "desinformação".
Como é que essa palavra surgiu? Em 2024, durante a abertura da crise climática no sul da Europa, né, a suposta crise climática? O termo foi usado para silenciar cientistas que questionavam e se colocavam contra os modelos catastrofistas da ONU.
Mas quem é que define o que é desinformação? Jornalistas, supostos especialistas, perfis nas redes sociais, hongs e governos começaram a aplicar a palavra desinformação como um rótulo que acusa, mas não explica nada, enquanto as multidões replicaram a palavra como se fosse um mantra. Veja, o critério não importa, o que importa é a repetição, como se a palavra fosse ela mesma um decreto.
Outro exemplo: a palavra "privilégio". Ela surgiu nos estudos de gênero durante a década de 1980, nos Estados Unidos. Depois, o seu uso pela mídia acabou explodindo na década de 2010.
Bom, hoje, essa palavra é uma sentença social. Hoje, professores e uma variedade imensa de profissionais das mais diferentes áreas, bom, eles podem perder os seus empregos por, por exemplo, criticar as políticas de cotas, e eles serão acusados do quê? Serão acusados de negar privilégios, e não haverá chance de defesa.
Assim, a palavra privilégio não descreve mais um determinado direito ou até mesmo um determinado dom, mas apenas condena atitudes escolhidas por determinadas militâncias. Pensem em como se usa a palavra "crise". Vocês já perceberam que a mídia sempre fabrica crises?
Sempre há uma crise: crise climática, sanitária, política, financeira? E por quê? Por que sempre há uma crise?
Porque a solução para a crise é sempre a obediência cega. Né? O filósofo Witgenstein nos dá a chave para entender por que as palavras podem se transformar em armas, em vírus.
Ele mostrou que as palavras ganham vida no contexto social, e os agentes do contágio sabem disso de tal maneira que, hoje, você não precisa mais censurar discursos; basta que uma determinada maioria que controle eixos importantes de informação reconfigure os significados das palavras, né? O que é, por exemplo, democracia nos dias de hoje? Bom, em muitas situações, democracia não passa de um consenso imposto por uma minoria.
Né? O que é liberdade nos dias atuais? Em muitas situações, a liberdade se tornou o quê?
Se tornou uma conformidade vigiada, controlada. O Kraus já denunciava esse processo. Ele dizia que a ideia que é adotada de imediato e reduzida à opinião popular constitui sempre um perigo.
Em 1914, o Kraus viu como a palavra patriotismo virou sinônimo de justificativa para a guerra e testemunhou esse vírus ser injetado na população austríaca como se fosse realmente uma droga. E o mesmo acontece hoje. Não é coincidência quando a palavra sustentabilidade, por exemplo, explode nas manchetes antes de cúpulas climáticas, né?
Ou a palavra inclusão se torna um dogma nas mais diferentes campanhas. Né? Tudo, meus caros, tudo, tudo é contágio.
Contágio planejado e depois repetido por uma multidão de autômatos, de pessoas que não pensam. Assim, o vírus da mente não altera apenas a forma e o conteúdo da nossa fala ou do nosso texto; o vírus impede que nós pensemos. E a repetição, ela é a chave.
Uma palavra martelada mil vezes, bom, não precisa de lógica. Uma palavra martelada mil vezes não precisa expressar a verdade; ela precisa apenas ecoar, ser repetida. Mas se a linguagem é um vírus, bom, então qual é a cura?
A cura é a dúvida. O antídoto contra a infecção semântica é romper o ciclo de repetição, é parar de repetir e perguntar: bom, de onde veio essa palavra? Quem a introduziu?
O que essa palavra quer de mim? Mas não pense que a simples dúvida é uma solução mágica, não é; ela é só o primeiro passo. Vin nos alertou também que as palavras significam o que nós aceitamos que elas signifiquem.
O perigo é quando essa aceitação é forçada. Antes, as palavras nasciam do uso orgânico que se fazia delas. Amizade retratava laços reais, coragem se referia a atos concretos.
Mas agora as palavras são injetadas como vírus de pensamento. A palavra resiliência, por exemplo, é usada para que você aceite o inaceitável. O termo empatia é usado para calar discordâncias, e há casos extremos de eliminação de palavras.
Né? Em 2023, por exemplo, o termo mérito foi praticamente banido das políticas educacionais, sendo substituído, por exemplo, por todas as ideias de esforço individual. E quando uma palavra conceito também.
. . Kraus previu isso quando denunciou que a imprensa tinha se tornado uma divindade secular.
Essa era a expressão dele, que decidia o que podia ou não podia existir. Hoje, os algoritmos e os filtros das redes sociais fazem o mesmo e eles enterram termos como liberdade individual e forçam o uso, no lugar dessa expressão, de outra, como por exemplo, bem coletivo. Então percebam que o vírus da mente age na percepção, não no comportamento direto.
O infectado não é forçado a obedecer, mas ele aceita a obediência porque a sua linguagem não lhe dá outras alternativas. Assim, o pensamento se torna linear, se torna binário, se torna previsível. A palavra vacina não é mais uma escolha médica, mas é um teste de lealdade, não é mesmo?
A palavra progresso, bom, ela também foi sacralizada. Alguém hoje tem coragem, nos dias de hoje, de dizer que o progresso não é sempre positivo? Claro que não.
E por quê? Porque questionar virou uma forma de transgressão, refletir se transformou numa forma de traição. A massa infectada não duvida; a massa infectada tem certezas programadas.
Kraus afirmava, com maravilhosa ironia, que ser um jornalista é não ter um pensamento e mesmo assim saber eximi-lo. Isso, desgraçadamente, é hoje o comportamento de milhões e milhões de pessoas. A dúvida, portanto, ela é o antídoto, mas não basta idealizar a dúvida.
Não, a dúvida exige uma estratégia: perguntar de onde veio isso. Funciona individualmente, mas o vírus não; o vírus é sistêmico. Então a dúvida precisa também de amplificação.
A dúvida precisa ser tão repetida quanto o próprio vírus. Nós precisamos perguntar para nós mesmos: eu penso ou eu apenas repito? Hoje, a escolha é entre ser hospedeiro do vírus ou um combatente.
E o nosso dever é quebrar as palavras impostas, não permitir que o vírus vença. É verdade, é verdade que ele está em toda parte, meus caros. Mas a nossa luta também pode estar em toda parte.
É isso. Um grande abraço para vocês!
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