HISTÓRIA REAL DESTA AVÓ 👵💔 MEU PAI ME ABUSAVA MUITO ENQUANTO EU DORMIA E MEU IRMÃO ERA ESPANCADO...

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Memórias da Vovó
Conheça a história dessa vovózinha guerreira, moradora no interior do Brasil. Sua história é um exem...
Video Transcript:
Às vezes me perguntam como sobrevivi. A resposta é simples. Quando você já dormiu com o próprio demônio, nada mais no mundo consegue te assustar de verdade. Oi, meus amores. Me chamo Neid Pereira da Silva, mas todo mundo me conhece como vó Neid. Tenho 78 anos. Nasci em 1947 em São João do Piauí, uma cidadezinha pequena que nem aparece direito no mapa. O lugar era tão seco que até as plantas tinham vergonha de nascer. Mas era o nosso cantinho, sabe? Hoje vou contar uma história que guardei dentro do peito por mais de 65 anos. Uma coisa
que nunca falei nem pros meus filhos, nem pros meus netos. Então, se você tá assistindo este vídeo agora, deixa o seu like, se inscreve no canal e ativa o sininho, porque esse carinho de vocês me dá a força que preciso para arrancar essa espinha que ficou cravada no meu coração por tanto tempo. Antes de começar minha história, a equipe desse canal falou para agradecer a marca de 75.000 inscritos alcançados. Realmente, né? É muita gente acompanhando e gostando desse canal incrível que proporciona espaço para nós compartilharmos ensinamentos profundos sobre a vida. E com isso nós queremos
saber de onde vocês são, quantos filhos você tem ou até mesmo uma história feliz ou triste da sua vida para você compartilhar conosco aqui nos comentários desse vídeo. Fique à vontade para abrir seu coração. Nossa casa em São João era pequena, de taipa, duas janelas na frente e uma porta que vivia rangendo. Éramos uma família simples. Meu pai, Antônio, minha mãe, Sebastiana, meu irmãozinho Joaquim e eu. Papai trabalhava como carregador no mercado da cidade, carregando sacas de farinha, feijão, o que precisasse. Mamãe lavava a roupa para fora, esfregando até suas mãos ficarem vermelhas como pimenta.
Até os meus 9 anos, a vida era difícil, mas tinha uma certa paz. Lembro da mamãe cantando enquanto torcia as roupas no quintal, do cheirinho de café passado de manhã cedinho, das histórias que vovó joaninha contava sobre assombrações e visagens quando vinha nos visitar. A barriga nem sempre estava cheia, mas o coração tinha um quentinho bom. Tudo mudou quando mamãe ficou doente. Começou com uma tosse que não passava. Depois veio a febre, o cansaço. É só uma gripe forte, dizia ela, tentando nos acalmar. Mas não era. O doutor da cidade disse que era tuberculose, uma
palavra que na época soava como sentença de morte na nossa região. Mandaram uma mãe para um sanatório em Teresina. Eu tinha 10 anos, Joaquim só sete. Ficamos sozinhos com papai, que nunca tinha sido um homem carinhoso, mas também nunca tinha sido mal. Pelo menos era o que eu achava. Nas primeiras semanas depois que mamãe foi embora, papai parecia perdido. Não sabia cozinhar direito. As roupas ficavam emboladas. A casa virou uma bagunça. Eu, mesmo pequenininha, tentava ajudar. Aprendi a fazer arroz, a lavar as roupas mais simples, a cuidar do Joaquim. "Você é igualzinha a sua mãe,
Neid", papai dizia, me olhando de um jeito estranho. "Na época achei que era elogio. Hoje sei que era o começo do pesadelo. Foi numa noite de tempestade que tudo começou. Lembro que os trovões eram tão fortes que as paredes de taipa tremiam. Joaquim, com medo, veio dormir na minha esteira. Nós dois dividíamos um quartinho pequeno enquanto o papai dormia no quarto maior, onde ficava a cama que dividia com mamãe. Acordei no meio da noite com uma sensação estranha, um peso sobre mim, um cheiro forte de cachaça, uma respiração pesada. Abri os olhos no escuro e
senti a mão grande do meu pai tapando minha boca. Fica quietinha, Neidinha! Ele sussurrou no meu ouvido. Se você gritar, vai acordar seu irmão. Não quero assustar ele. Quer? O que aconteceu depois é algo que ainda me dá arrepios de contar. As mãos dele ásperas da lida no mercado tocando onde nunca deveriam tocar, o peso do corpo dele esmagando o meu tão pequeno ainda. A dor, meu Deus, a dor que senti e que nem conseguia expressar, porque ele mantinha a mão na minha boca. Ao meu lado, Joaquim se mexeu. Por um instante, pensei que estava
dormindo, mas quando olhei de relance, vi seus olhinhos abertos na escuridão, brilhantes de lágrimas. Ele estava acordado, estava vendo tudo, mas estava paralisado de medo, como eu. Quando acabou, papai se levantou, ajeitou a roupa e disse, como se estivesse falando do tempo. Isso fica só entre nós, Neidinha. Se você contar para alguém, principalmente para sua mãe quando ela voltar, ninguém vai acreditar. Vão dizer que você inventou tudo para chamar atenção. E aí vou ter que mandar você para longe, pra casa da sua tia Zefa em Picos. Você nunca mais vai ver seu irmãozinho. É isso
que você quer? Balancei a cabeça, engolindo o choro. Não, não queria ser separada do Joaquim. Ele era a única pessoa no mundo que me fazia sentir menos sozinha. Papai saiu do quarto e só então Joaquim se aproximou de mim tremendo. Ele tinha só sete anos, mas seus olhos pareciam muito mais velhos naquela noite. "Nade, ele machucou você?", perguntou baixinho, a voz embargada. "Vai dormir, Joaquim." Foi tudo que consegui dizer, me virando de costas, querendo desaparecer, querendo morrer de vergonha. Aquela foi a primeira noite. Vieram muitas outras depois. Papai começou a beber mais, a ficar mais
tempo em casa. Inventava desculpas para não ir trabalhar. Tô com dor nas costas, dizia para os vizinhos. Mas eu sabia que ele só queria ficar em casa esperando a noite chegar. Aprendi a temer o pôr do sol. Enquanto as outras crianças da rua brincavam até tarde, eu inventava desculpas para entrar cedo. "Tenho que fazer janta pro papai", dizia. "Tenho que cuidar do Joaquim". Na verdade, estava tentando adiar o inevitável. Quanto mais cedo dormíssemos, mais cedo viria o momento que eu mais temia. Joaquim foi se tornando meu cúmplice silencioso. Ele fingia dormir quando o papai entrava
no quarto, mas sei que estava sempre acordado. Às vezes, quando o desespero era muito grande, eu apertava a mãozinha dele debaixo do cobertor fino e ele apertava de volta, como se dissesse: "Estou aqui, não vou te abandonar". Depois que papai saía, Joaquim vinha para perto de mim, me abraçava enquanto eu chorava baixinho. Ele não dizia nada. O que poderia dizer? Era só um menino. Mas aquele abraço, aquele contato puro e inocente era a única coisa que me impedia de enlouquecer. Uma vez Joaquim tentou impedir. Tinha 8 anos na época, magrinho como um graveto, mas cheio
de coragem. Quando o papai entrou no quarto e começou a se aproximar da minha esteira, Joaquim se levantou. "Deixa a Neid em paz, pai", ele disse, a voz fina, tremendo, mas firme. Papai olhou para ele como se estivesse vendo um inseto. Com um movimento rápido, deu um tapa no rosto de Joaquim, que o jogou contra a parede. O barulho da cabeça dele batendo no barro seco da parede ainda ecoa nos meus pesadelos. Da próxima vez que abrir essa boca vai ser muito pior", papai disse antes de voltar sua atenção para mim. Naquela noite, depois que
papai saiu, Joaquim chorou nos meus braços, um filete de sangue escorrendo de um corte no supercílio. "Desculpa, Nee." Ele soluçava. Desculpa não conseguir te proteger. Não tenta mais, Joaquim, implorei. Ele pode te machucar de verdade. Promete que não vai mais tentar? Ele prometeu, mas vi em seus olhos que algo tinha mudado. Uma semente de ódio tinha sido plantada. A situação piorou quando recebemos a notícia. Mamãe não voltaria tão cedo. O tratamento estava sendo mais difícil do que esperavam. Ela ficaria pelo menos um ano no sanatório. Papai sorriu quando leu a carta. Um sorriso que me
gelou até os ossos. Somos só nós três agora, Neidinha, ele disse, passando a mão no meu cabelo de um jeito que me dava náuseas. Uma família unida. Naquela época eu já tinha 11 anos. As visitas noturnas eram quase diárias. Meu corpo, que começava a mostrar os primeiros sinais de mocidade, doía constantemente. Na escola, as professoras notavam que eu estava sempre cansada, distraída. "O que está acontecendo, Ne?", perguntou dona Clotilde, minha professora, um dia depois da aula. "Você era uma aluna tão boa, agora só fica olhando pela janela." Quase contei. As palavras estavam na ponta da
língua, mas então lembrei da ameaça do papai. Ninguém vai acreditar em você. E lembrei do Joaquim, de como ficaríamos separados se alguém descobrisse. Nada não, professora. Só estou com saudade da minha mãe. Dona Clotilde acreditou ou fingiu acreditar. Naquela época, certas coisas não se falavam, principalmente em cidade pequena. Os segredos das famílias ficavam guardados as sete chaves como pecados enterrados no quintal. O tempo foi passando e eu fui aprendendo a viver naquele inferno. Durante o dia era a Neid de sempre. Estudava, ajudava nas tarefas de casa, cuidava do Joaquim. À noite me transformava em outra
pessoa, alguém que flutuava para fora do próprio corpo enquanto ele era violado. Aprendi a me separar da dor, a fazer de conta que estava acontecendo com outra pessoa. Joaquim e eu criamos um código. Quando papai saía para beber nos fins de semana, sabíamos que voltaria pior. Então, antes de dormir, Joaquim dizia: "Vamos pra terra dos sonhos, Neid? Era nosso jeito de preparar um ao outro. Naquela noite, o monstro viria com mais força. Quando completei 12 anos, algo começou a mudar dentro de mim. O medo foi, aos poucos, dando lugar a uma raiva surda, constante, que
queimava como brasa. Comecei a pensar em formas de fugir, de me livrar daquele tormento. Mas como? Para onde iria? E Joaquim nunca o abandonaria? Foi nessa época que o acaso, ou talvez Deus, para quem acredita, colocou dona Zuleide na nossa vida. Ela era uma senhora que morava sozinha no fim da rua, uma parteira aposentada que tinha fama de rezadeira. As pessoas diziam que ela conhecia ervas que curavam qualquer doença, que tirava quebranto, mal olhado, tudo quanto era coisa ruim. Um dia, Joaquim caiu brincando e cortou o joelho num caco de vidro. O corte foi fundo,
sangrava muito. Papai não estava em casa, graças a Deus. E eu, desesperada, corri para a casa de dona Zuleade. Ela recebeu a gente com uma calma que parecia aquecer a alma. limpou o ferimento de Joaquim, fez um curativo com ervas que tiraram a dor quase na hora e nos deu um chá doce que sabia a canela e conforto. Enquanto cuidava de Joaquim, dona Zuleide me olhava de um jeito diferente, como se pudesse ver através de mim, através das roupas largas que eu usava para esconder as marcas, através do sorriso falso que tinha aprendido a manter.
"Menina", ela disse depois que Joaquim adormeceu no sofá velho dela. Tem coisa ruim acontecendo na sua casa, não tem? Fiquei paralisada. Como ela sabia? Será que era feiticeira mesmo, como o povo dizia? Não, dona Zuleide, tá tudo bem. Gaguejei, baixando os olhos. Ela pegou minhas mãos entre as dela. Mãos velhas, enrugadas, mas tão quentes e seguras. Neid, olha para mim. Conheço os sinais. Já vi muitas meninas com esse mesmo olhar que você tem. olhar de quem carrega um peso grande demais pros ombros pequenos. Foi como se uma represa se rompesse dentro de mim. As lágrimas
vieram grossas, desesperadas. Não consegui falar, só chorar. Chorar como nunca tinha permitido a mim mesma. Dona Zuleide me abraçou, me deixou chorar até não ter mais lágrimas. Então, com uma voz suave, mas firme, ela disse: "Não precisa me contar agora, mas saiba que tem ajuda neste mundo, tem saída. Quando estiver pronta, venha me ver sozinha". Aquelas palavras plantaram uma sementinha de esperança no meu coração. Havia ajuda, havia saída. Talvez, só talvez, o pesadelo pudesse ter um fim. O que eu não sabia é que o fim viria de uma forma que eu jamais poderia imaginar. e
que meu irmãozinho, aquele que testemunhava tudo em silêncio, teria um papel muito maior do que eu esperava na nossa libertação. Meus queridos que me assistem, essa é só a primeira parte da minha história. É difícil falar, as lembranças ainda dóem, mas, como diz o ditado, palavra dita é flecha atirada. Agora que comecei, preciso ir até o fim. Agradeço de coração a cada um que está me acompanhando. Se essa história está tocando seu coração, compartilha com alguém que você acha que precisa ouvir. Às vezes, nossas dores ajudam a curar as dores dos outros. Joaquim tinha uma
maneira toda especial de me consolar depois das noites ruins. Ele juntava florzinhas do mato, Maria sem vergonha, Bem Mequer, Margarida Silvestres e deixava em cima do meu travesseiro. Nunca falava nada. só colocava lá como um recadinho silencioso. Ainda existe beleza nesse mundo, Nee. Meu irmãozinho completou 9 anos naquela época. Era um menino franzino, de olhos grandes e expressivos, que pareciam guardar mais sabedoria do que qualquer criança deveria ter. Enquanto os outros meninos da idade dele corriam pelas ruas de São João jogando bola ou caçando passarinho, Joaquim preferia ficar perto de mim, como um guardião invisível.
A gente quase não precisava de palavras. Desenvolvemos uma linguagem própria, feita de olhares, gestos pequenos, sinais que só nós dois entendíamos. Um puxão de orelha significava cuidado. Três torcidinhas seguidas queriam dizer: "Ele está de mau humor hoje". Um assubio curto era: "Tudo bem, podemos relaxar um pouco". Dessa forma, protegíamos um ao outro como podíamos. Quando o papai chegava com aquele cheiro de cachaça mais forte que o normal, Joaquim inventava dor de barriga, febre, qualquer coisa para dormir no meio entre mim e a porta, como se seu corpinho magro pudesse servir de barreira. Não funcionava claro.
Papai simplesmente o empurrava para o lado, às vezes com tanta força que Joaquim batia na parede. Mas meu irmão nunca desistia. Na noite seguinte, lá estava ele de novo, tentando ser meu escudo. "Por que você não grita, Neid?", ele me perguntou uma vez num sussurro depois que papai tinha saído do nosso quarto. "Se você gritar bem alto, os vizinhos vão ouvir e aí vão me separar de você", respondi, segurando sua mãozinha. "Não posso deixar isso acontecer, Joaquim. Somos só nós dois nesse mundo. Ele apertou minha mão de volta. Lágrimas silenciosas escorrendo pelo rostinho sujo. Mas
ele tá te machucando cada dia mais. Era verdade. Com o tempo, papai ficava mais violento, mais exigente, como se precisasse deais para satisfazer aquele demônio que habitava dentro dele. As marcas no meu corpo já não eram só as invisíveis. Tinha hematomas nos braços, nas pernas, às vezes até no rosto. Na escola, comecei a inventar desculpas. caí da mangueira do quintal", dizia, "ou tropecei na pedra do caminho." As professoras fingiam acreditar, ou talvez acreditassem mesmo. Naquele tempo, em cidade pequena, olho roxo de menina pobre não causava espanto. Era só mais um detalhe da paisagem, como os
cachorros magros nas ruas ou os bêbados dormindo na praça. Joaquim sofria vendo meu sofrimento. Cada noite que ele testemunhava os abusos, algo morria dentro dele. O menino alegre, que um dia fora, estava desaparecendo, dando lugar a uma criança séria, de olhos opacos e riso raro. Na escola, a professora dele mandou um bilhete. Joaquim está muito calado, não brinca no recreio, não participa das aulas. Aconteceu alguma coisa em casa? Papai leu o bilhete, deu uma risada seca e o jogou no fogo. Professora metida, o menino é quieto mesmo. Puxou ao meu pai. Que fique na dela.
Mas não era só na escola que Joaquim estava mudando. Em casa, começou a ficar mais observador, mais atento a tudo. Notava os horários em que papai saía e voltava. ouvia as conversas dele com os amigos no boteco. Prestava atenção nos hábitos dele como um cientista estudando um animal perigoso. Uma vez flagrei Joaquim mexendo nas coisas de papai. Estava remexendo a gaveta onde ele guardava a navalha de barbear, o dinheiro das semanas, documentos antigos. "O que você tá fazendo?", perguntei assustada. "Se ele te pega?" Joaquim fechou a gaveta num movimento rápido. Só queria ver se encontrava
alguma carta da mamãe. Queria saber se ela vai voltar logo. Acreditei ou quis acreditar, mas algo nos olhos dele me dizia que havia mais. Uma determinação nova, um fogo pequeno, mas constante, como brasa que se recusa a apagar. Nossa ligação se tornou ainda mais forte naqueles dias. Éramos como dois náufragos agarrados à mesma tábua. A deriva num mar revolto. Tudo que tínhamos era um ao outro. À noite, quando conseguíamos ficar sozinhos, contávamos histórias um para o outro. Histórias de lugares distantes onde ninguém nos machucaria. Joaquim tinha uma imaginação incrível. inventava cidades inteiras com detalhes tão
vivos que quase dava para sentir o cheiro, ouvir os sons. "Vamos fugir um dia, Neid", ele dizia, os olhos brilhando no escuro. "Vamos para um lugar bem longe, onde ele nunca vai nos encontrar." "Para onde?", eu perguntava, entrando na fantasia, permitindo-me sonhar por alguns minutos. pro Rio de Janeiro ou Salvador ou até pro estrangeiro. Dizem que em Portugal todo mundo fala que nem a gente ia ser fácil se virar por lá. Eu sorria, afagando seus cabelos. E como vamos chegar lá espertinho? Vou trabalhar, juntar dinheiro. Quando eu ficar maior, forte que nem o Zé do
Armazém, vou te levar embora daqui. É uma promessa. A inocência daquele plano me partia o coração. Zé do Armazém era um rapaz de 17 anos que conseguia carregar três sacas de farinha de uma vez só. Para Joaquim, aquilo era o auge da força, o símbolo máximo do que um homem podia fazer. O que ele não entendia e como poderia é que nem toda a força física do mundo poderia nos proteger do monstro que morava na nossa casa. Esse monstro não tinha garras ou dentes, tinha autoridade, tinha o direito dado pela sociedade de fazer o que
quisesse com seus filhos dentro das quatro paredes que chamávamos de lar. Nossas visitas à casa de dona Zuleide se tornaram mais frequentes. Não precisava de desculpa. Papai quase nunca perguntava onde estávamos durante o dia, desde que estivéssemos em casa quando ele chegasse. Dona Zuleide nos recebia sempre com um sorriso e alguma guloseima simples, um pedaço de bolo de fubá, rapadura com coco, o que tivesse. Ela nunca me pressionou a falar sobre o que acontecia em casa. Parecia saber que quando estivesse pronta eu contaria. Enquanto isso, nos oferecia um refúgio, um cantinho de paz, onde podíamos
ser apenas crianças por algumas horas. Foi numa dessas visitas que descobriu o quanto Joaquim sabia mais do que demonstrava. Dona Zuleide tinha me pedido para buscar manjerona no quintal dela e fiquei uns bons minutos lá fora. Quando voltei, ouvi a voz de Joaquim vinda da cozinha. Ele faz coisas ruins com ela, dona Zuleide. Toda a noite. Eu vejo tudo, mas não consigo fazer nada. Congelei do lado de fora da porta, o coração batendo tão forte que parecia querer pular pela boca. "E sua mãe, menino, não pode ajudar?" A voz de dona Zuleide so baixa, controlada,
mas pude sentir a raiva contida nela. Mamãe tá doente, longe, tem tuberculose. Papai disse que se contarmos para alguém, vão levar a Neid embora e eu nunca mais vou ver ela. Houve um silêncio e então a voz de dona Zuleide ainda mais baixa. Tem horas, meu filho, que a gente precisa fazer justiça com as próprias mãos. Esse mundo não foi feito para proteger meninas como sua irmã. Não consegui ouvir o que Joaquim respondeu, porque nesse momento um cachorro começou a latir no quintal. assustado com um gato. Entrei na cozinha como se não tivesse escutado nada,
entregando as ervas para dona Zuleide. Mas aquela conversa ficou martelando na minha cabeça. Fazer justiça com as próprias mãos. O que dona Zuleide queria dizer com isso? E mais importante, o que Joaquim tinha entendido daquelas palavras. Os dias foram passando e com eles veio o aniversário de 13 anos. Não houve comemoração. Claro, papai nem lembrou. Mas Joaquim tinha guardado um pedacinho de doce de goiaba que ganhou na escola e dividiu comigo cantando: "Parabéns para você baixinho, só nós dois no quintal." "13 anos", ele disse, olhando para mim com seriedade. "Agora você é uma moça, Nee."
Sorri triste. Não me sentia uma moça. Me sentia velha por dentro, como se tivesse vivido 1 anos de sofrimento. Meu corpo estava mudando, sim. Estava ficando mais parecida com mamãe, como o papai fazia questão de me lembrar nas noites mais terríveis. Mas por dentro eu era só uma menina assustada, presa numa vida que não escolhi. Foi depois desse aniversário que as coisas começaram a piorar ainda mais. Papai começou a trazer amigos para casa, homens bêbados como ele, de olhares que me perseguiam pela casa como cobras espreitando um rato. Tá virando uma mulherzinha bonita, sua filha.
Ouvi um deles comentar uma noite quando achavam que eu estava no quarto, igualzinha à Sebastiana quando era nova. A risada de papai suou como um rosnado. Pois é, a cara da mãe, mas mais obediente. O medo se transformou em terror absoluto. Se antes eu temia o que papai fazia, agora temia o que ele poderia permitir que outros fizessem. Comecei a trancar a porta do quarto à noite, empurrando a cômoda velha contra ela para reforçar. Funcionou por algumas noites. Papai batia, xingava, ameaçava, mas acabava desistindo, voltando para a sala para beber mais com seus amigos. Mas
sabia que era apenas uma questão de tempo até ele derrubar aquela porta ou encontrar outra maneira de chegar até mim. Joaquim, sempre atento, percebeu meu medo crescente. Uma noite, enquanto esperávamos o sono chegar, ou fingíamos esperar, já que o sono verdadeiro era um luxo que raramente tínhamos, ele segurou minha mão com força. "Nade, nós precisamos fazer alguma coisa", sussurrou tão baixo que quase não ouvi. "Não pode continuar assim. O que podemos fazer, Joaquim? Somos só crianças." Ele ficou quieto por um longo momento e quando falou de novo, sua voz tinha uma gravidade que nunca tinha
ouvido antes. Dona Zleide sabe de coisas, coisas que podem ajudar. Que tipo de coisas? Perguntei, sentindo um arrepio subir pela espinha. Ervas, remédios, coisas que podem fazer uma pessoa dormir tão profundo que nem sente quando alguém mexe nas coisas dela. Ou coisas que podem fazer alguém não acordar mais. A última parte foi dita num sopro quase inaudível, mas o peso daquelas palavras encheu o quarto escuro. O que Joaquim estava sugerindo era tão assustador, tão definitivo, que meu primeiro instinto foi rejeitar completamente. Não, Joaquim, isso é pecado, é crime, a gente não pode. É mais pecado
o que ele faz com você toda noite. Joaquim interrompeu a voz embargada. Deus não pode querer que você sofra assim. E se ele não faz nada para ajudar, a gente tem que se ajudar. A sabedoria crua naquelas palavras, vindas de um menino de apenas 9 anos, me deixou sem resposta. O que Joaquim estava propondo era impensável, terrível. E ainda assim, enquanto deitava ali no escuro, esperando o rangido da porta que anunciaria mais uma noite de horror, uma vozinha dentro de mim perguntava: "E se fosse a única saída naquela noite? Papai conseguiu arrebentar a fechadura da
porta. A cômoda foi empurrada com tanta força que uma gaveta saltou, espalhando nossas poucas roupas pelo chão. O que se seguiu foi pior que todas as noites anteriores juntas. A raiva pela resistência, pela porta trancada, transformou o papai numa besta feroz, sem nenhum resquício de humanidade. Quando finalmente acabou e ele saiu, deixando-me como um trapo jogado no chão, Joaquim se aproximou. tinha ficado escondido embaixo da cama, tremendo, ouvindo tudo. Seu rostinho estava molhado de lágrimas, mas seus olhos, seus olhos tinham algo novo, uma determinação fria, adulta, que não deveria existir em alguém tão jovem. Amanhã
vamos falar com dona Zuleide. Ele disse, não como uma sugestão, mas como uma decisão já tomada. Não pode acontecer de novo, Neid. Não vou deixar. Não tive forças para argumentar. Naquela noite, algo se quebrou dentro de mim. Não apenas meu corpo, mas minha resistência, minha esperança de que as coisas poderiam melhorar sem uma ação drástica. Olhei nos olhos do meu irmãozinho, aquela criança que tinha visto e ouvido coisas que nenhuma criança deveria testemunhar. E pela primeira vez concordei com um movimento de cabeça. Mal sabia que aquele gesto simples seria o início de um plano que
mudaria nossas vidas para sempre. Um plano nascido do desespero de duas crianças, alimentado pelo silêncio cúmplice de uma velha parteira e que culminaria em algo que nem nos meus sonhos mais sombrios eu poderia imaginar. Na manhã seguinte, não consegui levantar da esteira. Cada pedacinho do meu corpo gritava de dor, como se tivesse sido pisoteada por uma manada de bois. Joaquim trouxe uma cuia com água, molhou um pano e passou de leve no meu rosto, limpando o sangue seco. "Vou dizer pro papai que você tá doente", ele falou, arrumando o cobertor roto sobre mim. "Que não
pode ir pra escola hoje?" Nem precisou. Papai saiu cedinho, sem nem olhar para dentro do nosso quarto. Talvez estivesse com vergonha do que tinha feito, ou, mais provável, simplesmente não se importava. Fiquei deitada o dia inteiro, flutuando entre a consciência e um sono agitado, cheio de pesadelos. Joaquim faltou a aula para ficar comigo. De tempos em tempos, ele saía e voltava com um pouco de água, uma banana madura que tinha pegado no pé do vizinho, um pedaço de rapadura que guardava embaixo da cama para emergências. Ao entardecer, quando o sol já começava a se pôr,
deixando aquela luz alaranjada entrar pelas frestas da janela, consegui- me sentar. Meus lábios estavam rachados. O olho esquerdo mal abria de tão inchado. "Precisamos ir na dona Zuleide", Joaquim insistiu, olhando nervoso pela janela. Antes que ele volte, não posso sair assim, Joaquim. Todo mundo vai ver, vai saber. Vamos pelos fundos, pelo caminho da roça. Ninguém vai ver a gente. Era um caminho mais longo, por trás das casas, atravessando um pasto e uma plantação de mandioca abandonada. Seria quase impossível para mim no estado em que estava, mas o desespero nos olhos de Joaquim era tão grande
que não tive coragem de dizer não. Com uma dificuldade imensa, me vesti. Joaquim me ajudou a calçar as sandálias de borracha, a única que eu tinha. Passei um lenço pela cabeça, tentando esconder o máximo possível do rosto. Saímos pelos fundos, como criminosos fugindo da cena do crime. O caminho foi uma tortura. Cada passo era uma facada nas minhas partes mais íntimas, machucadas além do que qualquer menina deveria suportar. Várias vezes tive que parar, me apoiar em Joaquim, respirar fundo para não desmaiar. O sol já tinha desaparecido completamente quando finalmente chegamos aos fundos da casa de
dona Zuleide. Joaquim bateu na porta da cozinha. Três batidinhas leves, como tínhamos combinado. Dona Zuleide atendeu quase imediatamente, como se estivesse esperando por nós. Quando viu meu estado, seu rosto enrugado se contorceu numa expressão que mesclava horror e fúria. "Meu Pai eterno," ela murmurou, me ajudando a entrar, fechando rapidamente a porta atrás de nós. "Menina, o que fizeram com você?" Foi ele. Joaquim respondeu antes que eu pudesse dizer qualquer coisa. foi o pior de todos dessa vez. Achei que ia matar ela. Dona Zuleide me levou para um quartinho nos fundos da casa, onde tinha uma
cama estreita coberta com uma colxa de retalhos. Com cuidado, me ajudou a deitar. Vou preparar uns remédios, criança, paraa dor pros machucados. Mas primeiro preciso ver onde dói. Com mãos gentis, tão diferentes das mãos brutas, que me machucavam noite após noite, ela examinou meus ferimentos. Não disse nada, mas vi lágrimas silenciosas escorrendo por suas bochechas enrugadas enquanto passava um bálsamo cheiroso nas minhas escoriações. Isso não pode continuar. Ela finalmente disse: "Mais para si mesma do que para nós isso é obra do demônio, não de gente. A senhora precisa ajudar a gente." Joaquim implorou, parado na
porta do quarto, os olhos arregalados de preocupação. Do jeito que a senhora falou outro dia, justiça pelas nossas mãos. Dona Zuleade olhou para ele longamente, depois para mim, como se estivesse medindo algo, pesando uma decisão grave. Tem certeza disso, menino? É um caminho sem volta. Tenho. Joaquim respondeu sem hesitar. Se não fizermos nada, uma hora ele vai matar ela ou fazer pior. O que poderia ser pior do que aquilo que eu já vivia? Pensei comigo mesma, mas no fundo sabia a resposta. Papai tinha começado a trazer amigos para casa, amigos que olhavam para mim daquele
jeito. Era só questão de tempo até ele não conseguir nem completar o pensamento. Era terrível demais. Don Azule suspirou profundamente, como se o peso do mundo estivesse sobre seus ombros magros. Vou fazer um chá para dor agora. Depois conversamos sobre o resto. Ela saiu do quarto, deixando-me sozinha com Joaquim. Meu irmãozinho se aproximou da cama, segurou minha mão entre as suas, tão pequenas ainda. "Vai ficar tudo bem, Ne", ele sussurrou com uma convicção que não combinava com seus 9 anos. "Prometo, nunca mais ele vai te machucar. O chá de dona Zuleide fez efeito quase imediatamente.
A dor que latejava em todo o meu corpo começou a diminuir, dando lugar a um torpor agradável. Pela primeira vez em dias, talvez semanas, relai completamente. Devo ter adormecido, porque quando abri os olhos novamente, a luz da manhã entrava pelas fras da janela. Por um momento, fiquei desorientada, sem saber onde estava. Então, as lembranças voltaram. A noite terrível, a caminhada dolorosa até a casa de dona Zuleide, o chá misterioso. Sentei na cama, surpresa ao perceber que a dor tinha diminuído consideravelmente. Ainda doía, sim, mas era suportável. Agora consegui levantar sozinha, caminhar até a porta do
quarto. Do lado de fora, ouvi vozes baixas vindas da cozinha. Reconhecia a de dona Zuleide e a de Joaquim, conversando em tons urgentes. Aproximei-me devagar, ainda um pouco tonta. Tem que ser na comida, dona Zuleide dizia, ou na bebida, de preferência na cachaça, que ele não vai sentir o gosto. E quanto tempo demora para fazer efeito? A voz de Joaquim, séria como a de um adulto, depende de quanto ele tomar. Se for tudo de uma vez, questão de uma hora. Se for aos poucos, pode levar dias. E não tem perigo dele descobrir? Não. Se vocês
forem espertos, o sabor é forte, mas a cachaça disfarça bem. E quando ele começar a sentir os efeitos, vai achar que é só bebedeira mesmo. Congelei no meio do caminho. Do que eles estavam falando? Que plano era aquele? Uma parte de mim sabia exatamente o que estava acontecendo, mas outra parte, talvez a menina inocente, que ainda existia em algum lugar dentro de mim, se recusava a acreditar. Entrei na cozinha e as duas cabeças se viraram para mim, expressões culpadas nos rostos. "Do que vocês estão falando?", perguntei, a voz ainda fraca. Dona Zuleide trocou um olhar
com Joaquim, depois suspirou. Senta aqui, minha filha. Temos que conversar. Sentei à mesa de madeira gasta, as mãos tremendo. Joaquim veio para o meu lado, pegou minha mão como fazia sempre que sentia meu medo. Neid, dona Zuleide, começou a voz grave. O que seu pai faz com você não é só pecado, é crime. Crime dos grandes. Se a polícia soubesse, ele iria preso por muitos anos. Mas ninguém vai acreditar, respondi automaticamente, repetindo o que tinha ouvido de papai tantas vezes. Vão dizer que é mentira minha. Talvez. A lei não costuma proteger meninas como você. É
verdade. Mas existe outra justiça nesse mundo. A justiça que a gente faz quando ninguém mais vai fazer por nós. Olhei para ela sem entender completamente ou fingindo não entender, porque no fundo eu sabia. Sabia pelo tom da voz dela, pelo olhar determinado de Joaquim, pela conversa que tinha acabado de ouvir. "A senhora tá falando de matar meu pai?" As palavras saíram como um sopro, quase inaudíveis, como se dizer em voz alta pudesse tornar a ideia mais real, mais terrível. Dona Zuleide não respondeu diretamente. Em vez disso, pegou minhas mãos entre as suas, olhou-me diretamente nos
olhos. O que eu vou te perguntar agora é muito sério, menina. Preciso que você responda com o coração. Se pudesse escolher entre a vida dele e a sua própria vida, o que escolheria? Não consegui responder de imediato. A pergunta era simples, mas a resposta a resposta envolvia coisas que uma menina de 13 anos não deveria precisar considerar. "Não é só a minha vida, finalmente disse. É a do Joaquim também. Se papai descobrir que a gente tentou fazer alguma coisa contra ele, ele vai fazer coisa muito pior do que já faz. Joaquim completou a voz trêmula.
Neid, eu sei que é pecado. A professora na escola falou que matar é o pior pecado de todos, mas ele não é um pai de verdade, é um monstro. E a gente mata monstros nas histórias, não é? A lógica infantil e, ao mesmo tempo, tão adulta de Joaquim, me pegou desprevenida. Era verdade. Nas histórias que mamãe contava antes de adoecer, o dragão mau sempre morria no final. O gigante que ameaçava de aldeia sempre era derrotado. O bem sempre vencia o mal. Mas na vida real, na vida real, meninas como eu sofriam em silêncio e ninguém
vinha salvá-las. Na vida real, o monstro não era uma criatura fantástica, com escamas e garras, mas um homem comum, um pai que os vizinhos cumprimentavam na rua, que o padre abençoava na missa de domingo. "E se não der certo?", perguntei, a voz quase sumindo. "E se ele descobrir?" "E se vai dar certo?", dona Zuleide afirmou com uma certeza que só os muito velhos ou os muito jovens possuem. "Tenho 80 anos, menina. Já ajudei muita gente nessa vida, algumas de maneiras que o padre não aprovaria. É verdade. Mas Deus julga pelo coração, não pelas aparências. E
no meu coração sei que estou fazendo o certo. Olhei para ela, para Joaquim, para minhas próprias mãos machucadas. Pensei nas noites de terror, no medo constante, na dor que parecia não ter fim. Pensei em mamãe longe no sanatório, sem saber o que acontecia com seus filhos. Pensei no futuro. Haveria algum se continuássemos assim? O que a gente precisa fazer? Perguntei finalmente, sentindo como se estivesse me jogando de um precipício. O alívio no rosto de Joaquim foi imediato, como se um peso imenso tivesse saído de seus ombros. Dona Zuleide apertou minhas mãos com força, seus olhos
brilhando com uma mistura de tristeza e determinação. Primeiro, você precisa se recuperar, ficar forte de novo. Vai levar alguns dias e nesse tempo seu irmão vai voltar para casa para não levantar suspeitas. Não quero deixar a Neid sozinha. Joaquim protestou. Precisa, menino. Se ficarem os dois sumidos, seu pai vai desconfiar, vai procurar, vai fazer perguntas pela vizinhança. Melhor você voltar dizer que sua irmã foi visitar uma amiga em outra cidade que recebeu um recado da sua mãe pedindo para ela ir. Joaquim não parecia convencido, mas acabou concordando. Combinamos que ele diria a papai que eu
tinha ido visitar uma prima em Picos, que voltaria em alguns dias. Era uma mentira frágil, mas conhecendo o papai, ele não se importaria muito. Talvez até ficasse aliviado por não ter que me ver por um tempo depois do que tinha feito. Nos três dias que passei na casa de dona Zuleide, recuperei não só as forças físicas, mas também um pouco da esperança. Pela primeira vez em anos, dormi sem medo. Comi sem o estômago embrulhado de pavor. Respirei sem sentir que cada fôlego poderia ser o último. Dona Zuleide cuidou de mim como uma avó cuida de
uma neta doente. Fez comidas fortalecedoras, caldo de galinha caipira, angu quiabo, feijão com maxixe e me obrigou a comer tudo, mesmo quando não tinha apetite. me deu banhos de ervas para curar as feridas do corpo e conversou longamente comigo sobre coisas que nunca tinha ouvido antes, sobre o direito de uma mulher ao próprio corpo, sobre como o que papai fazia era crime em qualquer lugar do mundo, sobre como eu merecia uma vida sem medo. "Tem mais gente como você do que imagina, minha filha", ela me disse uma noite, enquanto trançava meu cabelo. Mulheres, meninas que
sofrem caladas. Umas conseguem fugir, outras outras ficam presas até o fim da vida ou até acontecer uma desgraça maior. A senhora já ajudou outras, como eu? Perguntei timidamente. Ela ficou em silêncio por um momento, as mãos parando no meio da trança. Já minha filha, mais do que gostaria. E algumas, algumas escolheram o mesmo caminho que você e seu irmão estão escolhendo agora. Não perguntei mais. Não precisava saber detalhes. Bastava saber que não éramos os primeiros a enfrentar aquele tipo de horror, nem os primeiros a tomar medidas desesperadas para escapar. Na manhã do quarto dia, Joaquim
apareceu cedinho. Estava mais magro, com olheiras profundas, mas havia uma excitação nervosa em seus movimentos. Ele acreditou? Perguntei enquanto comíamos o mingal de milho que dona Zuleide tinha preparado. Acreditou? nem fez muitas perguntas. Só quis saber quando você volta. Troquei um olhar com dona Zuleide. A pergunta de papai não era por preocupação, sabíamos bem. Era por outra coisa, algo que fez meu sangue gelar, mesmo estando longe dele. E o que você respondeu? Dona Zuleide perguntou a Joaquim. Que ela volta amanhã, que foi só visitar a prima que tá doente amanhã. A palavra caiu como uma
pedra entre nós. Significava que nosso tempo tinha acabado, que o plano precisava ser posto em prática agora ou tudo voltaria a ser como antes, ou pior. Então é hoje, dona Zuleide, declarou, levantando-se da mesa. Foi até um armário velho no canto da cozinha, abriu uma gaveta de baixo e tirou um embrulho de pano. Colocou-o na mesa entre nós. Isso aqui é tingueo e capeta misturado com outras ervas que só eu conheço. Não tem gosto, não tem cheiro quando misturado com cachaça, mas é mortal. Olhei para o embrulho como se fosse uma cobra pronta para dar
o bote. Era pequeno, inofensivo na aparência. Difícil acreditar que algo tão simples pudesse acabar com uma vida. "Quanto ele precisa tomar?", Joaquim perguntou, a voz firme, como se estivesse perguntando sobre uma receita comum. Tudo. Se for menos, pode só deixar ele muito doente e aí vai ser pior para vocês. E como a gente faz? Coloca na comida. Na cachaça é mais seguro. Ele sempre tem uma garrafa guardada, não tem? Joaquim assentiu. Tem embaixo da cama dele. Diz que é a reserva especial só dele. Então é nessa que vocês vão colocar tudo de uma vez e
depois é só esperar. A simplicidade do plano era assustadora. Não parecia real que algo tão fácil pudesse resolver o problema que tinha destruído nossa infância. Mas ao mesmo tempo, uma voz dentro de mim gritava que era errado, que era pecado, que haveria consequências terríveis. "E se descobrirem?", perguntei, a voz quase sumindo. "A polícia, os vizinhos não vão descobrir", dona Zuleide garantiu. "Vai parecer que ele bebeu demais, que o coração não aguentou. Acontece muito por aqui, você sabe. Homem que bebe até cair um dia não levanta mais. Era verdade. Nos últimos anos, pelo menos três homens
da cidade tinham morrido assim. Encontrados de manhã, depois de uma noite de bebedeira, frios como pedra. Ninguém investigava muito. Era o destino natural de quem vivia com a garrafa na mão, diziam. E vocês não podem contar para ninguém nunca, nem quando forem velhos, nem no confessionário, nem no leito de morte. Esse segredo vai com vocês para o túmulo, entendem? Assentimos solenemente. O peso daquele pacto secreto parecia ainda mais pesado que o embrulho que dona Zuleade empurrou para as mãos de Joaquim. "Guarda bem", ela instruiu dentro da roupa, onde ninguém vai ver, só tira na hora
de colocar na garrafa. Joaquim guardou o embrulho dentro da camisa, próximo ao coração. Seus olhos, normalmente tão doces e infantis, tinham uma determinação sombria que me assustou um pouco. "É a única maneira, Neid", ele disse, percebendo minha hesitação. "Senão ele vai continuar. Vai ficar pior. Você ouviu o que ele disse pros amigos dele outro dia?" Sobre sobre deixar eles? Não terminou a frase. Não precisava. Eu tinha ouvido também através da porta as risadas grosseiras, as insinuações, as promessas terríveis. Era só questão de tempo até papai cumpri-las. Tá certo, disse finalmente, engolindo o nó na garganta.
Vamos fazer. Dona Zuleide me abraçou forte, como se quisesse me proteger uma última vez antes de me mandar de volta para o perigo. Coragem, minha filha. Às vezes só existe um caminho para a liberdade e não é o mais fácil. Saímos da casa dela quando o sol já estava alto. O caminho de volta para casa parecia mais longo do que nunca, cada passo nos aproximando não apenas do nosso lar, mas de um ponto sem retorno em nossas vidas. Enquanto caminhávamos lado a lado, Joaquim pegou minha mão como fazia tantas vezes para me confortar. Mas dessa
vez foi ele quem apertou com força, como se precisasse da minha força, não o contrário. "Vai dar tudo certo", sussurrei, tentando convencer a mim mesma tanto quanto a ele. "Amanhã vamos estar livres. Livres?" A palavra soava estranha, quase incompreensível. "Como seria a liberdade? Como seria dormir sem medo, acordar sem terror, viver sem aquela sombra constante sobre nós?" Eu não sabia, mas estava disposta a descobrir, mesmo que o preço fosse carregar para sempre o peso do que estávamos prestes a fazer. O que não sabíamos enquanto caminhávamos de volta para casa naquela tarde quente de 1960, era
que o destino tinha outros planos para nós. Planos que não envolviam veneno, nem morte premeditada, mas que seriam igualmente definitivos. Quando chegamos em casa, o silêncio nos recebeu como um mau presságio. Não havia sinal de papai, o que era estranho aquela hora da tarde. Normalmente ele estaria dormindo, recuperando-se da bebedeira da noite anterior ou sentado na porta enrolando um cigarro de palha com aqueles dedos grossos que me causavam tanto pavor. "Onde será que ele tá?", Joaquim sussurrou, olhando ao redor, como se papai pudesse pular de algum canto escuro a qualquer momento. Entramos devagar, pisando nas
pontas dos pés, como dois pequenos ladrões invadindo o território inimigo. A casa estava uma bagunça maior que o normal. Pratos sujos empilhados na pia da cozinha, garrafas vazias pelo chão, roupas espalhadas. Havia um cheiro estranho no ar, uma mistura de suor, cachaça e algo mais que não conseguia identificar. Foi quando notamos a porta do quarto de papai entreaberta. De dentro vinha um som abafado, como um gemido ou um ronco. Troquei um olhar com Joaquim, o coração disparado no peito. Era a nossa chance. Se papai estava dormindo bêbado demais para perceber nossa presença, poderíamos colocar o
veneno na garrafa sem problemas. Mas antes precisávamos ter certeza. Com cuidado infinito, Joaquim se aproximou da porta e espiou pela fresta. O que viu fez seu rostinho empalidecer. Ele recuou rapidamente, fazendo um sinal para que eu ficasse quieta, e me puxou para o quintal. Tenho uma mulher com ele. Joaquim sussurrou, os olhos arregalados. Tão, tão na cama. A notícia me pegou de surpresa. Papai nunca tinha trazido mulheres para casa desde que mamãe foi para o sanatório. Pelo menos não que eu soubesse quem seria e o que isso significava para nosso plano. "Quem é?", perguntei baixinho.
"Não sei, nunca vi, mas estão bebendo. Tem uma garrafa lá." Meu cérebro trabalhava rapidamente, tentando adaptar nosso plano a essa nova situação. Se papai tinha companhia, seria mais difícil colocar o veneno na bebida sem sermos notados. Por outro lado, se estavam bebendo, talvez ficassem inconscientes logo e então teríamos nossa chance. Vamos esperar, decidi. Ficar aqui fora até eles dormirem ou a mulher ir embora. Fomos para o fundo do quintal, onde uma velha mangueira oferecia sombra e um esconderijo razoável. Dali podíamos ver a casa sem sermos vistos. Sentamos na terra batida, encostados no tronco da árvore
e esperamos. O sol começou a se pôr, pintando o céu de tons alaranjados. A fome apertava, mas não ousávamos entrar para pegar comida. O embrulho de dona Zuleide continuava escondido na camisa de Joaquim, próximo ao coração, como um segredo sombrio que carregávamos. "Você acha que a gente vai pro inferno?", Joaquim perguntou de repente, a voz tão baixa que quase não ouvi. A pergunta me pegou desprevenida. Não tinha pensado nisso, ou melhor, tinha evitado pensar. Na igreja, o padre sempre dizia que tirar a vida de alguém era pecado mortal, imperdoável. Mas dona Zuleide tinha dito outra
coisa, que Deus julgava pelo coração, não pelas aparências. Não sei, respondi honestamente. Mas se for, pelo menos estaremos juntos. Joaquim assentiu como se aquilo fosse consolo suficiente. Para nós, o inferno não podia ser muito pior do que o que já vivíamos. E se o preço da liberdade fosse a condenação eterna, talvez valesse a pena. Quando a noite caiu completamente, ouvimos risadas altas vindas da casa. A porta da frente se abriu e uma mulher saiu cambaleando um pouco. Mesmo na escuridão, pude ver que era jovem, talvez uns 20 anos, com um vestido justo e cabelos despenteados.
Papai apareceu na porta sem camisa, segurando uma garrafa. "Volta amanhã?", ele perguntou, a voz arrastada pela bebedeira. A mulher riu, um som agudo que cortou a noite. Se tiver mais dessa cachaça boa, volto sim. Eles se despediram e papai ficou na porta, vendo a mulher se afastar pela rua de terra. Depois cambaleou de volta para dentro, fechando a porta atrás de si. Agora? Joaquim perguntou, a mão já indo para o embrulho escondido. Ainda não sussurrei. Temos que esperar ele dormir se ele nos pegar. Nem precisei completar a frase. Ambos sabíamos o que aconteceria se papai
nos pegasse, tentando envenená-lo. Seria o fim de tudo. Esperamos mais uma hora, agachados no escuro, ouvindo os sons da noite. Grilos cantando, um cachorro latindo ao longe, o vento suave balançando as folhas da mangueira. Finalmente, quando a casa ficou completamente silenciosa, decidimos que era hora. Eu vou". Joaquim declarou, levantando-se. "Você fica aqui de vigia. Se ele acordar, você assobia que nem sabiaá. Lembra como a gente fazia?" A sentir o coração tão apertado que mal conseguia respirar. Não queria deixar Joaquim ir sozinho, mas sabia que era mais sensato. Eu fazia mais barulho, estava ainda um pouco
fraca dos machucados. "E se papai acordasse de repente?" Toma cuidado", sussurrei, abraçando meu irmãozinho com força. "Qualquer coisa errada, corre!" Joaquim tirou o embrulho de dentro da camisa, desfez o nó do pano com dedos trêmulos. Dentro havia um pó amarelado, quase brilhante na escuridão. Parecia inofensivo, como açúcar mascavo ou canela. Difícil acreditar que aquilo poderia matar um homem adulto. Coloca tudo na garrafa. Repeti as instruções de dona Zuleade. Mistura bem e depois sai de lá o mais rápido possível. Com um último olhar determinado, Joaquim seguiu em direção à casa, silencioso como um gato. Eu fiquei
ali, os olhos fixos na porta dos fundos, rezando para todos os santos que conhecia, pedindo proteção para meu irmãozinho valente. Os minutos que se seguiram foram os mais longos da minha vida. Cada segundo parecia uma eternidade. Imaginava Joaquim entrando no quarto onde papai dormia, despejando o veneno na garrafa, o terror de estar tão perto do monstro que nos atormentava. Então, de repente, ouvi um barulho. Não era o assobio que tínhamos combinado. Era um grito, um grito de homem furioso, seguido pelo som de algo quebrando. Sem pensar, corri para a casa. Quando cheguei à porta dos
fundos, ouvi a voz de papai alta e embriagada. O que você tá fazendo, moleque? Mexendo nas minhas coisas. Entrei correndo, o coração na garganta. Na sala mal iluminada por uma lamparina, vi a cena que me assombraria por décadas. Papai segurando Joaquim pelo pescoço, o rostinho do meu irmão já vermelho pela falta de ar, os pezinhos suspensos no ar. "Larga ele!", Gritei, jogando-me contra papai com toda a força que consegui reunir. Foi como bater numa parede de tijolos, mas o impacto o fez cambalear, soltar Joaquim por um instante. Meu irmão caiu no chão, tcindo, tentando recuperar
o fôlego. Papai se virou para mim, os olhos injetados de ódio e cachaça. Então voltou sua vagabunda e ainda planejando me matar, achei o moleque com esse pó tentando colocar na minha bebida. Ele mostrou o embrulho de dona Azuleide, agora amassado em sua mão grande. O pó amarelado se espalhava entre seus dedos, caindo no chão como chuva dourada. Não é nada disso. Tentei mentir, a voz trêmula. É, é remédio pro Joaquim. Ele tá doente. Mentirosa. Papai rugiu avançando para mim. Pensa que sou burro? Sei bem o que é isso. É veneno de rato. Vocês iam
me matar enquanto dormia, seus demônios. Recuei até bater na parede. Não havia para onde fugir. Fechei os olhos, esperando o golpe que certamente viria. Mas em vez disso, ouvi um grito de guerra, um grito infantil, desesperado, mas cheio de coragem. Abri os olhos a tempo de ver Joaquim correndo em direção a papai, segurando algo nas mãos. No último instante, reconheci o objeto, a velha faca de caça que papai guardava em cima do armário, aquela que usava para limpar peixes quando ainda íamos pescar, nos tempos em que mamãe estava em casa e tudo parecia normal. Deixa
a minha irmã em paz", Joaquim gritou, enterrando a faca na perna de papai, com toda a força que seu corpinho magro conseguiu reunir. O som que saiu da garganta de papai não era humano. Era um rugido de dor e fúria, como de um animal ferido. Ele se virou, esquecendo-se de mim, concentrando toda sua raiva em Joaquim. Você vai morrer, moleque. Ele rosnou, arrancando a faca da própria perna, sangue escorrendo e manchando o chão de terra batida. Vou acabar com você agora. O que aconteceu a seguir foi como um pesadelo em câmera lenta. Papai avançou para
Joaquim, que estava paralisado de medo. Eu me joguei entre eles, tentando proteger meu irmão. Houve um empurrão, um desequilíbrio e então a faca. Não sei exatamente como aconteceu. Se papai tropeçou em seu próprio sangue, se Joaquim tentou se defender, se eu empurrei na hora certa, só sei que num instante papai estava de pé, ameaçador. No outro estava no chão, a faca enterrada em seu peito, os olhos arregalados de surpresa. "Nade", ele murmurou, meu nome saindo como uma bolha de sangue entre seus lábios. E então, nada mais. Ficamos paralisados. Joaquim e eu, olhando para o corpo
de nosso pai, caído no chão da sala como um boneco de pano descartado. O sangue se espalhava, formando uma poça escura ao redor dele, brilhante a luz fraca da lamparina. "Ele tá tá morto?", Joaquim perguntou, a voz quase inaudível. Me ajoelhei ao lado do corpo, tremendo tanto que mal conseguia me mover. Coloquei a mão no pescoço de papai. procurando uma pulsação, como tinha visto dona Zuleide fazer uma vez quando o velho Sebastião desmaiou na feira. Nada, apenas a pele ainda quente, mas já começando a esfriar e a completa ausência de movimento. Tá, respondi, me afastando
como se o corpo pudesse me atacar a qualquer momento. Ele tá morto. A realidade da situação caiu sobre nós como uma tempestade. Tínhamos planejado matar nosso pai, sim, mas com veneno durante o sono. Uma morte que pareceria natural, que não levantaria suspeitas. Agora tínhamos um corpo ensanguentado no meio da sala, uma faca, evidências claras de luta. O que a gente faz? Joaquim perguntou, olhando para mim com aqueles olhos enormes, cheios de medo e confiança ao mesmo tempo. Naquele momento, precisei crescer. Não havia mais tempo para ser criança, para ter medo, para hesitar. éramos só nós
dois agora e precisávamos agir rápido. Precisamos limpar tudo decidi, o cérebro trabalhando freneticamente. E depois, depois temos que fazer parecer um acidente ou que alguém invadiu a casa. Passamos as horas seguintes num transe de terror e eficiência. Limpamos o sangue do chão o melhor que pudemos. Viramos a casa de cabeça para baixo, como se houvesse ocorrido um assalto. Pegamos o pouco dinheiro que papai guardava numa lata de biscoitos para reforçar a ideia de roubo. A faca limpamos e jogamos no rio que passava nos fundos da cidade. As roupas manchadas de sangue queimamos no quintal, numa
pequena fogueira que fizemos com gravetos secos. Quando o sol começou a nascer, olhamos ao redor. A casa parecia ter sido revirada. O corpo de papai estava estendido no chão da sala, a garrafa de cachaça quebrada ao lado, como se tivesse caído de sua mão. A história que criamos foi simples. Tínhamos dormido no quarto dos fundos, ouvimos barulhos e quando acordamos encontramos papai assim. Alguém devia ter invadido a casa durante a noite, procurando dinheiro ou coisas para roubar. "Agora a gente chora", instruí Joaquim, segurando suas mãozinhas trêmulas. chora bem alto paraa vizinha dona Josefa ouvir e
vir ver o que aconteceu. Não foi difícil chorar. As lágrimas vieram naturalmente, não de tristeza pela morte de papai, mas de medo, de alívio, de culpa, de mil emoções misturadas que não conseguíamos nomear. Choramos abraçados, nossos soluços ecoando na casa silenciosa enquanto o sol nascia no horizonte, marcando o primeiro dia do resto de nossas vidas. Dona Josefa apareceu pouco depois, atraída pelos gritos. Atrás dela, outros vizinhos. Logo a casa estava cheia de gente, exclamações de horror, perguntas que respondíamos entre soluços, mantendo nossa história simples, consistente. Eu ouvi um barulho, tia Josefa. Joaquim contava, lágrimas escorrendo
pelo rostinho pálido. Aí quando vim ver, papai estava assim no chão. Tinha gente correndo lá fora. Eu vi pela janela. Alguém foi chamar a polícia, que naquela cidadezinha consistia em dois homens mal humorados com revólveres enferrujados. Eles fizeram algumas perguntas básicas, olharam ao redor e rapidamente chegaram à conclusão que esperávamos. Assalto que deu errado. O ladrão provavelmente não esperava encontrar alguém em casa. Houve luta e papai acabou esfaqueado. Uma pena. Um dos policiais comentou sem parecer realmente sentir pena. Mas essas coisas acontecem. Vocês têm algum parente que possa ficar com vocês? Nossa mãe", respondi prontamente.
"Ela tá no sanatório em Teresina, mas temos a dona Zuleide, que é como uma avó pra gente. Foi assim que, no mesmo dia em que enterramos nosso pai num caixão simples no pequeno cemitério de São João do Piauí, fomos morar com dona Zuleide. Ela não fez perguntas. Seus olhos, quando nos recebeu na porta de sua casa, diziam que sabia mais do que qualquer um suspeitava, mas que levaria nosso segredo para o túmulo. À noite, quando finalmente ficamos sozinhos no quartinho dos fundos que ela preparou para nós, Joaquim se aproximou da minha cama. A gente fez
a coisa certa, Neid?", ele perguntou, a voz trêmula na escuridão. Puxei-o para perto de mim, abraçando-o como tinha feito tantas vezes quando ele era menor, quando precisava de consolo após testemunhar os horrores que aconteciam em nosso quarto. "Não sei se foi certa, Joaquim", respondi honestamente. "mas foi necessária. E agora estamos livres. Livres? A palavra tinha um gosto estranho na boca, como uma fruta que nunca tínhamos provado antes, doce, mas com um amargor no fundo, um lembrete do preço que pagamos por ela. Nos dias que se seguiram, a vida começou a tomar um novo rumo. Dona
Zuleide escreveu para o sanatório, informando sobre a morte de papai e perguntando se mamãe podia voltar para cuidar de nós. A resposta veio duas semanas depois. Mamãe estava melhor, mas ainda não completamente curada. Precisaria ficar mais alguns meses, talvez um ano. "Vocês ficam comigo até lá", dona Zuleide declarou como se fosse a coisa mais natural do mundo. Esta casa é grande demais para uma velha sozinha mesmo. E assim começou nossa nova vida. Dona Zuleide nos ensinou sobre ervas, sobre curas antigas, sobre os segredos que passava de geração em geração. Voltamos à escola e aos poucos
os olhares de pena dos outros alunos foram diminuindo. A história do assalto que vitimou nosso pai foi se diluindo nas conversas da cidade, substituída por novos acontecimentos, novos dramas. Joaquim voltou a sorrir, a brincar como uma criança normal. Eu comecei a dormir sem pesadelos, a acordar sem aquele peso esmagador no peito. A ferida dentro de nós não tinha cicatrizado, nunca cicatrizaria completamente, mas já não sangrava tanto. Um ano depois, mamãe voltou do sanatório. Estava mais magra, com um brilho diferente nos olhos, mais viva. O reencontro foi um misto de alegria e tristeza. Alegria por tê-la
de volta. tristeza pelo que não podíamos contar, pelo segredo que carregaríamos para sempre. "Vocês cresceram tanto", ela disse, abraçando-nos com força, e mudaram. "tem um olhar diferente agora, mais velho. Não contamos a ela o que papai tinha feito durante sua ausência. Para quê? Ela já carregava o peso da doença, da separação forçada. Deixamos que acreditasse na história do assalto, que chorasse a morte do marido, sem saber que tipo de monstro ele realmente era. Com o tempo, mamãe arrumou um trabalho como cozinheira na casa do prefeito. Alugamos uma casinha pequena, mas limpa, perto da escola. A
vida foi tomando um ritmo normal, ou o mais normal possível para quem carregava o tipo de segredo que carregávamos. À noite, às vezes quando todos dormiam, eu pegava Joaquim pela mão e íamos até o quintal. Olhar as estrelas. Era nosso momento, só nosso, quando podíamos ser completamente honestos um com o outro, sem medo de que alguém ouvisse. "Você se arrepende?" Ele me perguntou numa dessas noites, quando já tinha 10 anos, quase um ano após a morte de papai. Pensei longamente antes de responder. Pensei nas noites de terror, na dor, na humilhação. Pensei no plano com
o veneno, que não deu certo. Pensei na faca, no sangue, no corpo caído no chão. Pensei na liberdade que conquistamos, no preço que pagamos por ela. Não respondi com uma honestidade que só podia ter com ele. Não me arrependo. Ele ia acabar nos matando mais cedo ou mais tarde. Ou pior, foi ele ou nós, Joaquim, e eu escolheria nós mil vezes. Meu irmãozinho assentiu como se fosse exatamente a resposta que esperava. Ficamos ali em silêncio, olhando as estrelas, duas crianças que tiveram que crescer rápido demais, que tiveram que fazer escolhas que nenhuma criança deveria ter
que fazer. Mas estávamos vivos, estávamos juntos e de alguma forma estranha e torta estávamos livres. O futuro era incerto, cheio de perguntas sem respostas. Será que um dia a verdade viria à tona? Será que alguém suspeitaria? Será que o peso do que fizemos nos esmagaria com o tempo? Não sabíamos. Só sabíamos que naquele momento, sob o céu estrelado do sertão piauiense tínhamos um ao outro. E, por enquanto, isso era suficiente. Aquilo que chamamos de destino é uma coisa engraçada, meus amores. Às vezes ele dá voltas tão grandes que a gente se perde no caminho, mas
no final parece que tudo tinha que ser exatamente como foi. Mesmo as coisas mais terríveis tem um propósito que só entendemos muito tempo depois. 5 anos se passaram depois daquela noite. Eu já tinha 18 anos, uma moça feita, como diziam por lá. Joaquim estava com 14, crescendo rápido, já quase da minha altura. Mamãe tinha se recuperado bem da tuberculose, embora às vezes ainda tivesse crises de tosse nos dias mais úmidos. Nossa vidinha simples em São João do Piauí tinha encontrado um ritmo, uma paz que antes parecia impossível. Ninguém mais falava da morte de papai. O
assalto que deu errado virou apenas mais uma história triste entre tantas daquela cidadezinha. Nosso segredo permanecia enterrado fundo, conhecido apenas por mim, Joaquim e dona Zuleide, que continuava sendo nossa confidente e protetora. Mesmo depois que voltamos a morar com mamãe. Eu trabalhava agora como ajudante na escola, limpando as salas e às vezes até substituindo professoras quando faltavam. Não ganhava muito, mas junto com o salário de mamãe na casa do prefeito dava para nos manter. Joaquim tinha conseguido um trabalho nas tardes, entregando encomendas para o armazém do seu Juca. Foi numa dessas entregas que o destino
bateu à nossa porta de um jeito que ninguém poderia prever. Joaquim chegou em casa naquela tarde com um brilho diferente nos olhos, um nervosismo que não era típico dele. O que foi? Perguntei enquanto lavava a roupa no tanque do quintal. Parece que viu assombração. Pior que assombração, Neid, ele respondeu, sentando-se no batente, a voz baixa para que mamãe dentro de casa não ouvisse. Entreguei um pacote hoje na casa de um homem que chegou na cidade. Sabe quem é? Como vou saber? Nem conheço o sujeito. É um investigador da capital. Veio resolver uns casos antigos que
a polícia daqui nunca deu conta. Senti o sangue gelar nas veias. Um investigador depois de tanto tempo. Mas por quê? Quem teria interesse em desenterrar histórias antigas numa cidadezinha esquecida como a nossa? E e que casos são esses? perguntei, tentando manter a voz firme, as mãos continuando a esfregar o sabão nas roupas, como se nada tivesse acontecido. Não sei direito. Ele não falou muito, mas ouvi ele perguntar ao seu Juca sobre mortes estranhas nos últimos anos, inclusive a do papai. O sabão escorregou das minhas mãos, caindo na água com um barulhinho abafado. Por um instante,
foi como se o tempo tivesse voltado. O medo, aquele velho companheiro que eu achava ter deixado para trás, subiu pela minha espinha como uma cobra venenosa. "Deve ser rotina", tentei dizer, "mas me acalmar do que por realmente acreditar. Esses homens da capital sempre querem mostrar serviço quando vem pro interior. Vai ver que nem sabe direito o que tá procurando. Mas a expressão de Joaquim me dizia que ele não estava convencido e no fundo eu também não estava. Naquela noite não consegui dormir. Rolava na cama o pensamento fixo naquele investigador desconhecido. E se ele descobrisse? E
se alguém da vizinhança tivesse visto algo naquela noite? Algo que nunca contou até agora? E se as suspeitas dele o levassem até nós? Na manhã seguinte, decidi que precisava ver por mim mesma quem era esse homem. Me arrumei com cuidado, coloquei o vestido azul claro que mamãe tinha costurado para os domingos, prendi o cabelo com uma fita e fui ao armazém do seu Juca com a desculpa de comprar farinha. O armazém estava cheio, como sempre nas manhãs. Mulheres comprando para o almoço, homens discutindo a colheita, crianças tentando convencer as mães a comprar um doce. Seu
Juca estava atrás do balcão, pesando o feijão numa balança antiga. "Bom dia, seu Juca", cumprimentei, tentando parecer casual. Vim buscar um kgo de farinha paraa mamãe. Bom dia, Neidinha, ele respondeu sorrindo. Todos na cidade me chamavam assim, mesmo eu já sendo adulta. Sua mãe tá melhor da tosse? Tá sim, graças a Deus. O xarope da dona Zuleide ajudou bastante. Enquanto eleia a farinha, tentei sondar discretamente. Joaquim me contou que tem gente nova na cidade. Um homem da capital. Seu Juca levantou os olhos, interessado no meu interesse. Tem sim, delegado Augusto, lá de Teresina. Veio resolver
uns casos antigos, parece. Homem sério, de poucas palavras. Que tipo de casos? Perguntei, fingindo uma curiosidade casual. Ah, essas mortes mal explicadas que aconteceram por aqui. Diz ele que tem um padrão que pode ser obra da mesma pessoa, mas eu acho que é só falta do que fazer. Interior é assim. mesmo. Morte é morte. Nem tudo precisa de explicação complicada. Meu coração acelerou. Padrão? Mesma pessoa. Isso significava que a morte de papai não era o único caso que ele investigava. Isso era bom ou ruim? Não sabia dizer. E onde ele tá hospedado? perguntei, tentando não
parecer ansiosa na pensão da dona Clotilde ali na praça, mas se eu fosse você, ficava longe. Moça bonita como você não precisa se meter com esse tipo de gente. Esses homens da capital acham que podem tudo só porque usam um distintivo. Paguei pela farinha e saí. A mente a mil. A pensão da dona Clotilde ficava do outro lado da praça, há poucos minutos dali. Antes que pudesse pensar melhor, meus pés já me levavam naquela direção. A pensão era um sobrado antigo, de paredes amareladas pelo tempo, com uma varanda onde sempre havia umas três ou quatro
cadeiras de balanço. Dona Clotilde, uma senhora gorda e falante, estava na porta varrendo a calçada. Bom dia, dona Clotilde, cumprimentei, tentando parecer casual. Tá animada hoje, hein? Ah, Neidinha, bom dia, minha filha. é que temos visita importante na cidade. Um delegado de Teresina. Imagina só um homem tão importante hospedado na minha pensão. É mesmo? E o que traz ele por essas bandas? Dizem que é para investigar umas mortes antigas, inclusive a do seu pai. Que Deus o tenha. Uma pena aquilo, morrer daquele jeito, assaltado na própria casa. O estômago deu uma volta completa. Então era
verdade. Ele estava investigando a morte de papai. Tive que me segurar na parede para não mostrar o tremor que tomou conta do meu corpo. É uma pena consegui dizer. E ele já descobriu alguma coisa? Ah, isso eu não sei. Ele é muito reservado, sabe? Sai cedo, volta tarde, mas tenho certeza que vai pegar quem fez aquilo com seu pai. Justiça tarda, mas não falha, como dizem. Naquele momento, a porta da pensão se abriu e um homem saiu. Era alto, de ombros largos, cabelos grisalhos nas têmporas, rosto marcado pelo sol, usava calças bem passadas e uma
camisa branca de mangas compridas, apesar do calor. Seus olhos, de um castanho profundo, se fixaram em mim com uma intensidade que me fez gelar. Ah, delegado Augusto! Dona Clotilde exclamou toda animada. Deixa eu apresentar. Esta é Neidinha, filha do Antônio, que foi morto naquele assalto há 5 anos. Lembra que eu comentei? O homem me observou por um longo momento, como se estivesse gravando cada detalhe do meu rosto. Então, estendeu a mão num gesto formal. Prazer, senhorita. Augusto Mendes, delegado da Polícia Civil de Teresina. Apertei sua mão, sentindo-a áspera e forte contra a minha. O prazer
é meu, delegado. Neid Pereira da Silva. Interessante encontrá-la, Senrita Neid. Justamente hoje eu pretendia procurá-la para algumas perguntas sobre a morte do seu pai. Senti o chão desaparecer sob meus pés. Era como se um abismo tivesse aberto, pronto para me engolir, mas mantive o rosto calmo, anos de prática em esconder emoções, finalmente servindo para algo útil. Claro, delegado, o que o senhor quiser saber. Mas foi há tanto tempo, não sei se posso ajudar muito. Às vezes é justamente com o tempo que certas memórias se tornam mais claras", ele disse com um sorriso que não chegava
aos olhos. A senhora poderia me acompanhar até a delegacia? Será apenas uma conversa informal. Não tinha como recusar, sem parecer suspeita. Assenti e seguimos lado a lado pela rua de Paralelepípedos, em direção à pequena delegacia de São João do Piauí. O sol de meio-dia castigava, mas o calor não era nada comparado ao fogo de pânico que queimava dentro de mim. A delegacia era um prédio pequeno e desbotado, com duas salas e uma cela minúscula nos fundos. O delegado Augusto me conduziu até uma mesa onde havia vários papéis espalhados. Percebi que eram relatórios, fotos, documentos antigos.
Sente-se, por favor. Ele indicou uma cadeira de madeira. Quer um copo d'água? Aceitei a garganta seca como o sertão em agosto. Enquanto ele foi buscar a água, olhei rapidamente para os papéis. Havia fotos de papai morto estirado no chão da nossa sala. Meu estômago se revirou ao ver aquela imagem que tinha tentado tanto apagar da memória. "Aqui está", ele disse, voltando com um copo de água morna. Então, Senrita Neid, vamos ao que interessa. Estou revisando casos de mortes violentas não resolvidas na região. A do seu pai é uma delas. Mas eu pensei que tinha sido
um assalto, respondi tentando parecer confusa. Foi o que a polícia disse na época. É o que consta no relatório, sim, mas há inconsistências, coisas que não se encaixam. Meu coração disparou. Que tipo de inconsistências? Ele me olhou longamente antes de responder, como se avaliando o quanto deveria revelar. Por exemplo, não havia sinais de arrombamento. A casa estava revirada, sim, mas de um jeito estranho, como se alguém tivesse tentado fazer parecer um assalto, mas sem realmente saber como. Senti o sangue gelar. Era exatamente o que tínhamos feito. Dois meninos assustados tentando criar uma cena que nunca
tinham visto na vida real, apenas em histórias. E tem mais. Ele continuou foliando os papéis. Seu pai tinha inimigos? Alguém que pudesse querer fazer mal a ele. Não que eu saiba, respondi a boca seca, apesar da água. Ele era reservado, ficava na dele, trabalhava, voltava para casa, às vezes bebia um pouco. Um pouco? O delegado ergueu uma sobrancelha. Pelos relatos que colhi, seu pai era conhecido por beber bastante e quando bebia ficava violento. Não respondi. O que poderia dizer? Que sim, papai virava um monstro quando bebia? Que ele tinha passado anos me violentando enquanto mamãe
estava longe? que Joaquim era a testemunha silenciosa daquele horror. "Senrita Neid", ele continuou a voz mais suave agora. Encontrei no arquivo médico do posto de saúde registros de várias visitas suas: quedas, machucados inexplicados, até mesmo um possível deslocamento de ombro quando você tinha 12 anos. Coincidentemente, essas visitas pararam completamente após a morte do seu pai. O chão parecia estar se abrindo sob meus pés. como ele tinha conseguido aqueles arquivos, como tinha feito a conexão, tudo que tínhamos escondido por tanto tempo, todas as mentiras cuidadosamente construídas estavam desmoronando como um castelo de areia. "Eu era desastrada",
consegui dizer, a voz quase sumindo. "Vivia caindo, me machucando." O delegado Augusto me olhou com algo que parecia compaixão. Não era o que eu esperava. Senhorita Ne, não estou aqui para julgar. Estou aqui para entender o que realmente aconteceu naquela noite. E tenho uma forte suspeita de que não foi um simples assalto. Ficamos em silêncio por um longo momento. O ventilador velho no teto girava preguiçosamente, espalhando o ar quente pela sala pequena. Lá fora, a vida continuava. Vozes de vendedores ambulantes, o barulho de uma carroça passando, galinhas cacarejando em algum quintal próximo. "Por que isso
importa agora?", finalmente perguntei. "Passaram-se 5 anos. Seja lá o que aconteceu, já aconteceu." "Importa, porque a verdade sempre importa", ele respondeu simplesmente, "E porque há outros casos parecidos na região. Homens encontrados mortos em circunstâncias suspeitas. Homens que coincidentemente tinham fama de serem violentos com suas famílias. Meu coração parou por um instante. Outros casos? O que ele estava insinuando? O que o senhor está querendo dizer? Estou dizendo que pode haver um padrão. Alguém que está fazendo justiça com as próprias mãos. Alguém que está eliminando homens que abusam de suas famílias. Dona Zuleide. As palavras dela ecoaram
na minha mente. Já ajudei muita gente nessa vida. Algumas de maneiras que o padre não aprovaria. Seria possível? Seria dona Zuleide essa pessoa que o delegado procurava? Isso parece coisa de história, delegado. Tentei desconversar. Aqui é São João do Piauí. Não é Rio de Janeiro. Não temos assassinos misteriosos por essas bandas. Talvez não seja tão misterioso assim, ele respondeu, fixando seus olhos nos meus. Talvez seja alguém que conhecemos bem, alguém que teve motivos muito fortes para fazer o que fez. O suor escorria pelas minhas costas, mas não era do calor. Era medo puro, cristalino. Ele
sabia. De alguma forma, ele sabia. Vou ser direto com você, senhorita Nade. Ele disse, inclinando-se sobre a mesa. Acredito que seu pai abusava de você. Acredito que naquela noite algo deu errado. Talvez ele tenha descoberto algum plano. Talvez tenha sido mais violento que o normal. E acredito que você e seu irmão se defenderam. Foi legítima defesa, não foi? Não um assalto, mas legítima defesa. As palavras ficaram presas na minha garganta. 5 anos de mentiras, de segredos, de olhar por cima do ombro. 5 anos carregando um peso que nenhuma menina deveria carregar. E agora esse homem,
esse estranho, vinha e colocava tudo em palavras tão simples, tão diretas. Se eu disser que sim, consegui murmurar, o que acontece depois? Vamos ser presos? Meu irmão, minha mãe? Sua mãe sabia? Não. Ela estava no sanatório, tuberculose. Nunca soube de nada. O delegado Augusto se recostou na cadeira pensativo. Sabe por estou investigando esses casos, senrita Neid? Não é para prender ninguém, é porque também tive uma irmã mais nova que eu e também tive um pai como o seu. Olhei para ele, surpresa com a revelação inesperada. Havia uma dor antiga em seus olhos, algo que nunca
cicatrizou completamente. "O que aconteceu com sua irmã?", perguntei quase sem querer. Ela não teve a sua coragem. Nem a sorte de ter um irmão que a defendesse. Se enforcou aos 15 anos. Deixou uma carta explicando porquê. Mas minha mãe queimou antes que alguém pudesse ler. Para preservar a honra da família, ela disse, como se houvesse honra a preservar. Um silêncio pesado caiu entre nós. De repente, ele não era mais o temido investigador, o homem que poderia destruir nossa vida. Era apenas alguém que entendia, que conhecia aquela dor específica que carregávamos. "O que vai acontecer agora?",
perguntei novamente. Ele juntou os papéis espalhados na mesa, organizando-os numa pasta. Oficialmente, vou encerrar o caso. O relatório vai dizer que todas as evidências confirmam a teoria original do assalto, que não há motivos para reabrir a investigação depois de tanto tempo. E extraoficialmente, ele sorriu, um sorriso triste, mas sincero. Extra oficialmente, vou dormir melhor esta noite, sabendo que, pelo menos desta vez, a justiça foi feita. Mesmo que não pelos meios convencionais, não consegui conter as lágrimas que finalmente vieram depois de tantos anos segurando. Eram lágrimas de alívio, de libertação, como se um nó que estava
preso dentro do meu peito finalmente se desfizesse. "Mas tenho um conselho para você, senrita Neid", ele acrescentou a voz mais séria. "Saia desta cidade, você e seu irmão. Construam uma vida nova em outro lugar, onde ninguém conheça a sua história. Esta terra guarda memórias demais, algumas que é melhor deixar para trás. E quanto a dona Zuleide? Perguntei preocupada com a velha senhora que tanto nos ajudou. Ele me olhou com curiosidade. A parte? O que tem ela? Nada. respondi rapidamente, percebendo que ele não suspeitava do envolvimento dela. Ela foi como uma avó para nós, só isso.
Então, despeça-se dela, agradeça pelo que fez e siga em frente. Naquela tarde, ao sair da delegacia, senti como se estivesse andando sobre nuvens. Uma leveza que nunca tinha experimentado antes tomou conta de mim. O segredo que pesava toneladas estava agora compartilhado e por algum milagre tinha encontrado compreensão em vez de condenação. Contei tudo a Joaquim quando voltei para casa. A princípio, ele ficou aterrorizado, certo de que seríamos presos. Mas quando expliquei a conversa completa, a história do delegado, sua promessa de encerrar o caso, meu irmão chorou como não chorava desde criança. Acabou, Ne? ele perguntou,
enxugando as lágrimas. Realmente acabou? Acho que sim, Joaquim, mas o delegado tem razão. Precisamos sair daqui, começar de novo em outro lugar. Na semana seguinte, contamos à mamãe que queríamos tentar a vida na capital. Teresina não era uma cidade grande como São Paulo ou Rio, mas para nós, criados no interior, parecia um mundo de possibilidades. Mamãe ficou triste, mas entendeu. Sempre soube que não ficaríamos em São João para sempre. "Vou sentir tanta falta de vocês", ela disse, preparando uma trouxa com nossas poucas roupas. "Mas entendo que precisam seguir o destino de vocês. Só promete que
vão escrever e visitar quando puderem?" Prometemos, sabendo que cumpriríamos. Mamãe não tinha culpa de nada e merecia ter seus filhos por perto, mesmo que não fisicamente. Nossa última visita foi à casa de dona Zuleide. A velha senhora nos recebeu com seu habitual chá de ervas, sentada na cadeira de balanço na varanda. Então estão partindo? Ela disse, não como uma pergunta, mas como uma constatação. Está na hora mesmo. Como a senhora sabe? Joaquim perguntou surpreso. Ela sorriu, aquele sorriso misterioso que sempre tinha. Velhas como eu, sabem das coisas, menino. O vento traz as notícias, as plantas
sussurram segredos. Nos despedimos com lágrimas e promessas de escrever. Quando já estávamos saindo, dona Zuleade me chamou de volta. Neid, minha filha, lembra do que te disse anos atrás? Que às vezes a justiça precisa ser feita pelas nossas próprias mãos? Assenti sem conseguir falar. Nem sempre é como planejamos. Às vezes o destino tem seus próprios caminhos. Mas no final o que importa é que vocês estão livres e vão continuar livres. Ela pegou minha mão entre as suas enrugadas e quentes, e saiba que não foram os primeiros, nem serão os últimos a encontrar a liberdade desse
jeito. Enquanto houver monstros disfarçados de pais, maridos, irmãos, haverá quem precise se defender. Olhei nos olhos dela, compreendendo finalmente o alcance do que dizia. Dona Zuleide não tinha sido apenas nossa confidente, nossa cúmplice. Ela era uma guardiã silenciosa de muitas outras meninas como eu, mulheres presas em situações impossíveis, sem saída pela lei ou pela sociedade. "Agora vá", ela disse finalmente, soltando minha mão. "Construa uma vida bonita. Seja feliz. é a melhor vingança contra o mal que tentou te destruir.
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